sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Vinte e cinco

 

Querido pai,

Já não sei se isto aconteceu ou não, a minha memória traí-me tanto quanto a minha imaginação, mas creio que perguntaste o que seria de nós antes de descobrirmos que os médicos já não podiam fazer nada por ti. Quando me contaram que tinhas partido, disseram-me que as tuas últimas palavras foram estas, e isto tem tanto de profundamente triste como de poético (a poesia é tão triste, como a tristeza pode ser poema). É generoso, porque sabias que não estavas bem, mas só nós te importávamos; e é de um amor tão bonito e tão cuidadoso que, mesmo que isto não tenha acontecido, prefiro viver na ilusão de que o disseste. Magoa-me saber que tiveste a consciência da tua finitude, mas enaltece-me a ideia de que, nem aí, te esqueceste de nós.

Também eu me perguntei o que seria de nós, depois de tu o teres feito. Questionei-me, e questiono-me muitas vezes, do que seria de mim, e delas, depois de ficarmos as três, e continua a impressionar-me todos os dias existir sempre mais um, e termos aprendido a vivê-los com dignidade, esperança e alegria. Afinal estar bem não é consequência de se estar vivo, é um trabalho e requer engenho. Cá estamos nós, artesãs da vida e canalizadoras dos nossos sonhos, parafusa aqui e desenrosca ali, tem de ser, para nós não acabou e dar parte fraca é ofensivo depois de nos teres deixado com tanto cuidado. Não nos largaste à nossa sorte, poisaste-nos como se fôssemos flor num pedaço de terra nutrido, “é hora de crescerem e desabrocharem, reguem-se umas às outras, não se deixem esmorecer”.

Celebrar mais um ano, desde o ano em que te vi pela última vez, tornou-se doloroso. Não é o receio de estar a envelhecer (ainda não tenho idade para esse género de complexos), é o recordar de que não estás aqui e que não contarei com o teu beijo e com o teu abraço, nem no dia do meu aniversário. A morte é maléfica, filha da puta desengonçada, porque até no dia em que todos celebram a nossa vida não nos permite esquecermo-nos de que já foram mais. Ou que já tiveram todos presentes fisicamente. E isso, sem sombra de dúvidas, deve ser das suas maiores façanhas, e dos principais motivos pelos quais a detesto tanto.

Ontem fiz vinte e cinco anos. Sou muito parecida àquilo que imaginava ser, ainda que numa ou em tanta outra coisa quisesse ser diferente. Estou crescida, mas ainda estava disposta a ceder este ar mais adulto e responsável por um colo desde o carro estacionado na garagem até à minha cama no quarto, ou festinhas no sofá enquanto o Benfica joga. Não é justo perder isso só porque se cresce, não é uma escolha, e do meu presente e futuro sei eu.

Estou a fazer-me à vida, sem medos e com coragem de leão (perdoa-me, mas tive recentemente de me mudar para o Sporting por razões conjugais), por vezes em desfile, noutras aos tropeções. Recordo-me todos os dias de ti e tento ouvir aquilo que queres para mim. Não te culpo pelos azares que, de vez em quando, lá me acontecem, nem te censuro pela voz que sussurra no meu ouvido e me confunde as ideias. Quando perguntaste o que seria de nós, tenho a certeza de que sabias que, comigo, não tinhas de te preocupar por aí além. Sou de ir para a frente, a correr com sacos na mão e óculos riscados na cara, saíam daí (por favor) que estou a caminho dos meus sonhos. Também sabias que ia ter um dos melhores e mais estridentes clubes de fãs, família, amor e amigos, tudo junto e embrenhado, onde cabem dez a jantar cabem doze, e por isso a solidão não passaria sempre e só de um estado que tenho de romper com a força que digo ter. É-me fácil cair nela (e surpreendente como quem fala tanto e tão alto prefere, na maioria das vezes, o silêncio), mas também não podes tratar de tudo. Asas para voar, mas quem tem de voar sou eu.

Talvez um dia perca o hábito de te escrever sempre que celebro mais um ano. Para os que me rodeiam não sei se é bom, porque me imaginam triste e angustiada, e não quero que achem que não estou feliz e agradecia pelo carinho com que me abraçam neste dia em particular. Percebem, ou um dia perceberão, que nada substituí um pai, este que tive e tenho, mas cujo abraço já não posso ter.

Vemo-nos nos vinte e seis, ou noutro dia qualquer.

terça-feira, 13 de setembro de 2022

Viver enquanto durmo

Penso muitas vezes sobre esta coisa estranha que é viver enquanto durmo. Nunca fui de sono fácil, já dizia a minha mãe que em pequena, quando, por hábito ou poupança, fazíamos a viagem de Leiria ao Algarve pela nacional, tinham de encostar o carro para me acordar porque, entre um sonho mais vocal ou um pesadelo que me fazia espernear, empurrava com uma força que não tinha acordada, a cadeirinha onde a minha irmã também dormia.

Os anos passaram, mas esta coisa estranha que é viver enquanto durmo, e de tantas vezes viver vidas piores, nunca desapareceu. Basta-me adormecer para acordar noutros sapatos que, normalmente, estão a pisar terrenos pouco férteis, e que, por isso, podem desabar a qualquer momento. Com o desenrolar da vida, os sonhos foram mudando, e até houve períodos em que os recordei menos, acordava só com aquela sensação de que não tinha descansado, porque durante a toda a noite tinha estado ocupada a cair de um penhasco, a encontrar toda a minha família desfigurada num beco escuro ou a constatar que tinha saído de casa de saia, mas sem roupa interior (o que me fez, durante muito tempo, verificar se não me tinha esquecido de nada antes de ir para a escola).

Uma vez contei a alguém que dormia muito mal. Não quero denegrir ou injustiçar o interlocutor, até porque já não me recordo de todo o contexto, mas creio que me respondeu que era por sonhar tanto que tinha esta vontade desenfreada de escrever (até gracejou que estas noites mal dormidas fariam de mim rica – não conhece, certamente, a dificuldade que é ser escritor e enriquecer desse ofício em Portugal).

Há dias melhores do que outros, em que sonho menos, ou em que sonho tanto quanto nos piores, mas não acordo melindrada, preocupada ou triste por aquilo que vivi enquanto dormia. Depende da fase que estou a viver, se me sinto mais ou menos ansiosa, se me cruzei na rua com alguém que me amedrontou pelo aspeto ou pelo olhar (verdade seja dita, não é assim tão comum, mas lá vai acontecendo de vez em quando), ou se me deito com um pensamento obscuro, mas comum em mim, de que sou finita e os que me rodeiam também.

A coisa boa de sonhar tanto, e de esses sonhos serem, normalmente, pesadelos, é que já vivi os piores cenários de tudo aquilo que me pode vir acontecer. Chegar a casa e toda a minha família e amigos terem morrido; escrever um livro e no dia em que o vou entregar ele desaparecer, deitando meses ou anos de trabalho para o lixo; acabar na rua, infeliz, sem dinheiro, sem laços, sozinha. Alguns destes cenários são bastante dramáticos; outros, por outro lado, não me parecem assim tão impossíveis (nem que seja por pensar tantos neles, vou encontrando razões, na vida que vivo acordada, que me podiam fazer lá chegar). Mas tem coisas boas, sim: tenho sempre cuidado a descer escadas, porque já caí mil vezes nos meus sonhos; guardo constantemente e em vários sítios o que escrevo, porque já vi a minha reação ao perder um projeto de um livro em que acreditava; e até sou capaz de dar mais valor aos que me rodeiam, por ter experienciado de uma maneira assustadoramente real, ainda que estivesse a dormir, o que é viver sem que nenhum deles esteja cá.
Curioso que nunca tenho sonhos bons, daqueles em que, suponho eu, acordaria e diria em voz alta “oh, que sonho!”. Sonhei uma vez, e lembro-me como se fosse hoje, que ia a um daqueles programas de televisão cantar, uma espécie de The Voice, mas com outras cores e luzes, e tinha uma voz maravilhosa, mesmo de arrepiar. Lá estava eu, a interpretar uma balada, e mal lançava a primeira nota, as quatro cadeiras viravam-se e o público estava emocionado, estonteado, completamente apaixonado pelo meu talento. É absurdo, até porque não sei cantar, mas acho que coincidiu com a fase em que, para além de querer ser escritora, queria dominar todas as outras artes. É um sonho que nunca mais tive, mas adorei a manhã seguinte a esta aventura.

Talvez seja fruto de uma imaginação fértil, ou reflexo de uma ansiedade crónica. Seja lá o que for, ao menos que valha para isto.

terça-feira, 16 de agosto de 2022

56

 

Pelas minhas contas seriam cinquenta e seis.

Hoje é terça-feira, mas estava pronta para avisar lá na rádio que não iria, ou que precisava de sair mais cedo. Não são todos os anos que se celebram cinquenta e seis anos.

Agora que penso… Talvez não fosse lá na rádio que teria de avisar: que acharias tu deste sonho que agora concretizo? Não, eu também não teria de avisar lá no escritório de advogados: há uns anos ter-me-ias dito para não estudar Direito, que era demasiado criativa para me cingir a leis e demasiado nova para saber o que é o justo e o injusto.

Hoje avisaria que não iria ou que sairia mais cedo lá na biblioteca, no jardim, ou quem sabe não tivesse de avisar absolutamente ninguém, porque para ti eu já seria tão senhora de mim, que não havia ninguém a quem eu tivesse de prestar contas. Nos teus sonhos (e quiçá nos meus), hoje avisaria este computador em que escrevo, as personagens que invento e os capítulos que não terminarei.

Diria “vou ter de ir, que o meu pai faz anos”, e as personagens sorririam, outras pediriam que te mandasse um beijinho e as mais velhas que te desejasse saúde. Uma ou outra frase podia ficar aborrecida, preterida pelo soprar das tuas velas e pelos meus dedos a acarinharem-te o rosto ao invés de pressionarem freneticamente as teclas, até elas nascerem e estarem sempre quase perfeitas (nunca perfeitas, que isso não existe!).

Já ganhei mais do que ganho hoje e, por isso, ainda não seria este o ano em que te ofereceria um grande presente (ou talvez o fizesse com o dinheiro dos avós), mas estou certa de que este seria o ano em que, à mesa, falaríamos de como todos os outros passaram, e que felizes que foram, oh!, e os anos que virão… Mal podemos esperar!

Seriam cinquenta e seis. Tantos quantos os que terias vivido. Se me autorizassem, mandar-te-ia um beijinho no ar e diria, já em off, que o meu pai é o maior. A minha voz iria tremer um bocadinho (ainda não estou confortável com o microfone à frente, mas daria o meu melhor para que não o notasses), e depois todos te cantaríamos os parabéns. Sei que parece tolo, mas quando se ama assim muito uma pessoa, como digo tantas vezes, “mais do que tudo no Mundo”, ser tolo faz-nos ter a certeza de que nada fica por dizer; e que me achem tola, foi no meio da tolice que cresci e me tornei quem sou hoje (seja lá o que isso for), eu gosto.

Hoje o meu pai faria cinquenta e seis anos. Não tenho de sair mais cedo, e, a menos que arranje uma desculpa, não tenho motivos para não aparecer lá na rádio; para além disso, quero ir, porque sinto que é em dias como o de hoje que tenho de lhe mostrar que estou a viver, e que faço exatamente aquilo que quero. No meio da tolice, da liberdade, do amor, da fé.

quarta-feira, 4 de maio de 2022

Uma lista de podcasts para ouvirem (se assim o entenderem!)

            Passo muitas horas sozinha a trabalhar, outras tantas a rabiscar textos, excertos de livros e sinopses que não sei se vou ter a mestria de executar, e o equivalente a duas horas, mais coisa menos coisa, nas tarefas domésticas ou no trânsito. Há cerca de três anos descobri o mundo dos podcasts, e desde aí escolhi aproveitar o tempo que requer menos da minha concentração a ouvir quem se expõe para partilhar o que lhe apraz.

               Segundo alguns dos meus amigos, sou viciada em estar com os fones nos ouvidos, mas o que alguns deles não sabem é que poucas dessas vezes estou a ouvir música. Assim sendo, e porque acredito que esta forma de comunicar é o futuro numa vida cada vez mais atarefada, e com menos tempo para estar a olhar para um ecrã, partilho o que compõe a minha lista da Apple Podcasts.

               Oiço muitos podcasts de entretenimento e/ou de humor: entre eles, o Ask.tm (do Pedro Teixeira da Mota), o Ar Livre (do Salvador Martinha), o Doce da Casa (do Alexandre Guimarães e do Rúben Vale), o Fora da Lei (do Tiago Almeida), o Extremamente Desagradável (da Joana Marques, da Inês Gonçalves e da Ana Galvão), o Terapia de Casal (da Rita da Nova e do Guilherme Fonseca) e o Bate Pé (da Mafalda Castro e do Rui Simões). Pela periodicidade semanal, sinto-me tão enturmada nas suas vidas e cabeças, que chega a ser engraçada a ideia de os encontrar na rua e não os ir beijar e perguntar se já há desenvolvimentos relativamente àquele tema ou se já mudaram de opinião quanto às coisas com as quais discordei ou apenas me ri desalmadamente em casa, pela absurdez ou genialidade.

               Também oiço outro género de podcasts (a maioria deles em conjunto com o Miguel, para comentarmos e debatermos as temáticas que nos despertam mais interesse). Destaco dois, que se debruçam sobre política: o Eixo do Mal (com a Clara Ferreira Alves, o Daniel Oliveira, o Luís Pedro Nunes e o Pedro Marques Lopes) e o Programa Cujo Nome Estamos Legalmente Impedidos de Dizer (com o Carlos Vaz Marques, o João Miguel Tavares, o Pedro Mexia e o Ricardo Araújo Pereira). A pluralidade de ideias e a presença de quadrantes políticos opostos permite-me não só estar a par da atualidade, como perspetivá-la aos olhos de pessoas com ideologias com as quais me identifico mais e outras menos (e isso devia ser obrigatório para não nos tornarmos naquelas pessoas que nem querem saber da opinião dos outros por considerarem que aquilo que dizem não é uma opinião, mas sim a verdade: não o façam, é tolo!).

               Depois existem aqueles podcasts, ou diria eu, apelidando-os sem a preocupação de cumprir determinado número de caracteres, “os que nos fazem conhecer pessoas, realidades e adquirir gratuitamente conhecimento”, como A Minha Geração (da Diana Duarte) e o Deixar o Mundo Melhor (do Francisco Pinto Balsemão). O primeiro com a minha geração (literalmente) e o segundo com pessoas da geração dos meus avós. Ambos trazem inspiração, conhecimento e voz (a quem já a teve e teria sempre, como o Durão Barroso; mas também a quem mais dificilmente a teria num meio tradicional português, como a Inês Relvas).

               Se, como eu, gostarem muito de ler, não podem deixar de ouvir o Livra-te (da Rita da Nova, já repetente neste texto, e da Joana da Silva) e o Vale A pena (da Mariana Alvim).

             Menciono ainda A Minha Caravana (da Rita Ferro Alvim), o Na Minha Sepultura (do Nelson Nunes) e, como não poderia deixar de ser, o Fumaça (oiçam a entrevista ao Miguel Duarte sobre o resgate no Mar Mediterrâneo).

               Esta coisa de nos falarem ao ouvido tem muito que se diga: cria-se uma ligação indescritível e incomparável com a que teríamos se os estivéssemos a ver na televisão.

quarta-feira, 6 de abril de 2022

O José que de tanto querer saber nada mais quis saber

 

Ia todos os dias àquele café, ao pé do jardim, que o fazia acreditar, entre um gole do café a escaldar e os fones que colocava nos ouvidos, que estava mais afastado do centro da cidade do que os seus restantes sentidos indicavam. Sentava-se com as pernas cruzadas em cima da cadeira de metal, sem ambicionar encontrar uma posição confortável, semelhante à que teria em sua casa, no sofá, e esperava sem grandes pressas que alguém lhe perguntasse o que queria beber. Nessa altura, que por vezes até o irritava pela inconveniência, ora que estava a meio de um capítulo, ora detido em pensamentos menos mundanos, pedia um café curto, sem princípio, em chávena fria. Um conjunto de exigências que não se revertiam num líquido melhor, mas que faziam sempre o empregado rir-se, qual caricatura de exigentes divas que também iam àquele estabelecimento, e que tudo pediam sem um sorriso de troça no final.

Depois de ler dois ou três capítulos, e aí já acompanhado por uma água das pedras com uma rodela de limão, levantava-se e encaminhava-se até ao cesto repleto de jornais, perto da máquina do tabaco, para agarrar cada um deles e regressar à mesa. À sua volta, talvez se perguntassem do porquê de querer ler todos eles, ao invés de escolher apenas um, ou dois ou três com caráter diferente: uma coisa era procurar um jornal desportivo, outro nacional e outro que versasse sobre o Mundo; outra coisa, e essa era a coisa que ele fazia, era agarrar em todos eles, dispô-los em cima da mesa e procurar exatamente a mesma notícia em cada um, esperançoso de que todos eles não tivessem sido escritos com base na mesma agência noticiosa ou não fossem todas fruto dos mesmos excertos de determinadas declarações ou entrevistas. Não era que não confiasse no que diziam, mas já que tinha tempo, preferia conhecer todas as versões da história.

Com o passar dos anos, e tornando-se aquele momento uma rotina não só sua, como também de todos os que lá trabalhavam e por lá também paravam, acabou por pedir que lhe guardassem os jornais do dia anterior, e já não os lia no próprio dia, mas no dia seguinte. Coisa estranha, talvez possam pensar, pois que este senhor não sabia o que se passava hoje, mas estava sempre ao corrente do que acontecera ontem. No entanto, para ele, que via as notícias como histórias e não confiava sempre nelas como sendo realidade, guardarem-lhe os jornais do dia anterior (que, se não fossem seus, iriam para o lixo), permitia-o ter novas tarefas. Agora não só os lia, como também ia recortando, auxiliado pela tesoura que guardava no bolso do casaco no inverno ou no dos calções no verão, para depois colar cada uma das notícias, lado a lado, no caderno de mais de mil páginas que havia comprado numa papelaria ao final da sua rua.

Esta nova tática que adotara, e que lhe ocupava tanto mais tempo quantos mais jornais surgiam (e não se olvidava ele de imprimir em casa também os jornais online, alheio à quantidade de árvores que para esse hobby seriam mortas), tornaram-no cada vez mais desconfiado. Para ele não se tratava disso, que rejeitava liminarmente se de tal fosse acusado, mas de uma curiosidade incessante, de uma necessidade impossível de satisfazer de saber sempre mais, de descobrir mais um pouco. E a verdade é que quando se procura, encontra-se.

Foi aqui que tudo começou. Este senhor, a quem poderemos chamar de José, para efeitos de esta ser uma história para sempre recordada, encontrou novas notícias. Pesquisou e viu mais coisas, mas deixou de se preocupar com as suas fontes. Bastava que dissesse o que quer que fosse, e que parecesse verdade, para que ele a tomasse como certa… Ou, nos dias em que acordava com os pés de fora, mentira. Ora havia fome em Angola, ora tudo não passava de propaganda da oposição ao governo, que passados quase cinquenta anos desde a Independência queriam assumir o poder. Ora os impostos tinham subido, ora a carga fiscal tinha baixado para valores nunca vistos e o povo se tinha simplesmente tornado forreta. A verdade e a mentira passaram de valores absolutos para opiniões facilmente alteráveis. Houve um período em que o José era o homem mais informado do seu bairro, mas com o tempo tornou-se também ele uma fonte de notícias duvidosas, que divulgava nas suas redes sociais ou até naquela mesma mesa do café.

               A realidade e a ficção começaram a confundir-se e, com o passar do tempo, assoberbado por tudo o que lia e começara a ver não só na televisão, como em vídeos espalhados pelas redes sociais e pelo Youtube, sentia-se cada vez mais assustado. O Mundo ia acabar, cada pessoa que chegava à cidade onde ele sempre morara queria roubar-lhe o emprego e, quem sabe, os órgãos dos seus familiares mais próximos, e as alterações climáticas eram mentira (revelação que o deixara bastante frustrado depois de tantos anos a reciclar e a tomar duches rápidos ao invés de longos banhos!). Como era muita coisa e o tempo não esticava, parou de ler as notícias na íntegra e focou-se apenas nos títulos: podia não estar a inteirar-se de tudo, mas também achava que desta forma pouco lhe escaparia. Para além disto, passou a preferir ler os comentários no Facebook, ao invés de abrir os links: assim alguém lia a notícia por ele e o resumo era, certamente, de confiança. Porque haveria alguém de comentar uma notícia com uma reação que não lhe fizesse jus?

               Depois havia uma questão curiosa, que acabou por perceber passados uns meses nas redes sociais: todos concordavam com ele! Cada nova publicação que lhe aparecia para ler, cada vídeo que lhe era sugerido. O algoritmo: o melhor-amigo de quem detesta discutir (ou alargar os seus horizontes).

               E foi assim que o José deixou de acreditar no que quer que fosse. Porque durante um longo período da sua vida acreditou em tudo. Deixou de filtrar os meios através dos quais conhecia a realidade, as suas fontes e a sua credibilidade. Não interessava se quem falava estava apoiado por uma estrutura de comunicação séria, regulada, ou se era o seu vizinho Alexandre, que também era ótimo a espalhar a palavra e sabia sempre do que se passava no Oriente através de uns links de uns fóruns para os quais o convidava. Tudo podia ser verdade, ou não passar de um grande embuste. Pelo sim, pelo não, não gostava de pretos; pelo sim, pelo não, o buraco do ozono era uma invenção; pelo sim, pelo não, a pandemia tinha sido feita em laboratório por um grupo de chineses maléficos; pelo sim, pelo não, o onze de setembro tinha sido uma encenação; pelo sim, pelo não, e porque tudo estava mal e as soluções mais demoradas levavam-lhe mais tempo a percebê-las, apoiava quem para elas tinha uma explicação rápida e bastante óbvia.

               Deixou de acreditar no que tentavam incutir-lhe, e passou a ver tudo e todos como grandes profetas ou propagandistas de uma verdade que não era a sua verdade. Porque ao contrário do que lhe tinham dito, não existia apenas uma; cada um tinha a sua e era através dela que se devia reger. Agora não valia de nada os filhos, ou até os netos, dizerem-lhe que Portugal era um bom país para se viver: o José sabia a verdade. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, as minorias iam vencer, e até já tinha dito à sua neta Leonor que ela tinha de parar de brincar com os carrinhos do irmão, ou então levá-la-ia ao médico, ciente de que quem brinca com carrinhos são os meninos e se ela não gostasse de bonecas talvez fosse homossexual e teria de ser curada. Tudo coisas que aprendera na internet e que os jornais físicos, esses que no passado lia no café ao pé do jardim, lhe ocultaram quase a vida toda.

               Hoje o José tem uma visão distorcida do Mundo, pois acredita em tudo e duvida do que resta. Prefere os leads ao corpo do texto, e os debates em que uma das partes grita e diz supostos factos fáceis de assimilar ao invés de discursos mais pedagógicos e demorados. Por tudo o que viu e leu, não acredita na palavra daqueles que se dizem sérios, e prefere dar a sua atenção aos que pugnam ter sido calados a vida toda. Sente-se mais empático com os últimos, por se considerar conhecedor de coisas que os outros não conhecem e não ser, ainda assim, convidado para comentar na televisão a atualidade. Não está satisfeito com o estado do Mundo, e menos contente ainda com tudo aquilo que desconhecia quando se cingia a ler aquilo que a maioria lê. Afinal, agora, ele sente que sabe muito mais.

               A desinformação fê-lo perder a esperança, mas também o fez ganhar uma quantidade de coisas que considera imensuráveis. Entre elas, a certeza de que está sempre correto, de que mais ninguém o enganará e de que todos os que o rodeiam são tão ou mais tolos do que aquilo que pensam. Afinal, continuam a acreditar que o que passa na televisão é verdade, nos jornalistas que escrevem sobre o país e o Mundo e que veem as suas peças impressas e distribuídas em cafés como aquele a que ia.

               “Todos tolos”, menos o José.

               Nota de autora:

               A desinformação é um dos grandes perigos da atualidade. Devemos querer estar informados, mas temos de saber escolher onde e através de que meios o fazemos. A era digital levanta perigos muito sérios, que devem fazer-nos refletir enquanto sociedade. Para que nenhum de nós se torne o José.

  

                 

 

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

O superpoder de imaginar

             Um dos motivos pelos quais sempre me senti afortunada foi por ter uma imaginação fértil. Sei que se trabalha, e que quanto mais se lê, maior é a probabilidade de conseguirmos sair da nossa vida, e muitas vezes do nosso próprio corpo, para entrarmos em tantas outras vidas e sermos outras pessoas, mas acredito que, por algum motivo, já nasci assim. Lembro-me de andar na escola primária e de a minha professora, a querida professora Teresa, dizer aos meus pais que eu tinha uma imaginação dos diabos: podia ter passado o fim de semana inteiro em casa, mas na segunda-feira contava convictamente aos meus colegas a minha recente ida ao Jardim Zoológico, a forma carinhosa como os macacos se tinham aproximado de mim ou como me assustei quando vi um leão a rugir. Talvez na altura tenha dito que eu tinha era queda para mentirosa, mas a minha memória prefere embelezar esta história para não me fazer questionar dos valores que os meus pais me incutiram.

               Sempre li muito, e ainda hoje em dia o faço. Quando estou em períodos de criação, ou porque estou a escrever um livro, ou porque me encontro a refletir sobre o tema de um próximo, opto por livros técnicos ou simplesmente sem qualquer relação com qualquer coisa que possa vir a escrever. Já basta tudo aquilo que retiro das minhas influências quando escrevo passados meses de as ler, não convém, consciente ou inconscientemente, assemelhar-me em demasia à história que eventualmente poderia, através delas, estar a viver.

               Uma das coisas que acredito que vamos perdendo com a idade é o poder de imaginar. A nossa vida torna-se mais séria, mais rígida e, por força das responsabilidades, mais rotineira, e por isso sobra-nos pouco tempo para estarmos simplesmente parados a imaginar, até porque esse superpoder, de estarmos num sítio e de irmos para o outro, quando se chega à idade adulta, parece que nos obriga a estar constantemente a definir objetivos e metas… A acrescentar a isto, há muito boa gente, claro está, que não tem especial prazer de imaginar coisas: ou porque o acha inútil, ou pelo facto de simplesmente não retirarem nada de proveitoso de se colocarem noutra pele ou na mesma mas noutro Mundo.

               Mas não é o meu caso. E, como estou a crescer, e mais depressa chego aos trinta do que regresso aos dez, penso muito sobre isto de imaginar. Sobre como influenciou a minha infância e a minha adolescência, sobre como me permite tantas vezes quebrar o tédio e rir-me às gargalhadas, de como torna um sem fim de situações em momentos mais impactantes, divertidos e, também por vezes, profundamente mais tristes. Dou por mim, com mais frequência do que provavelmente quem me rodeia pensa, a imaginar “e se agora alguém dissesse que nunca viu azul no céu?”. Como é que eu reagiria? Aí, como devem estar a prever, imagino a minha resposta. Se estiver num dia especialmente imaginativa, vejo-nos quase à pancada, eu convicta de que habitualmente o céu está azul, ele, raivoso, com o facto de eu não saber como o céu está pintado.

               E sabe-me excecionalmente bem! Imaginar, pensar para além da minha vida, das pessoas com que me cruzo, das histórias que conheço. Olho pela janela da sala da minha casa e no silêncio tento ouvir vozes que têm sonhos, pessoas que se abraçam de forma ternurenta porque se reencontraram passados anos, um chefe antigo que me liga a dizer que eu era um pequeno génio. Rio-me, concentro-me em não perder a linha do meu raciocínio e vou pensando em novas personagens.

               Todos o fazíamos em crianças. Porque é que abandonamos hábitos que nos faziam viajar na altura das nossas vidas em que mais trabalhamos?  

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Amor e cozinhados

              

               Não fui daquelas crianças que, desde pequena, ajudou a mãe na cozinha ou a avó aos domingos a preparar o almoço. Tal poderá dever-se ao facto de a minha mãe também não nutrir uma paixão assolapada pela cozinha, ou por a minha avó ser tão exigente e perfecionista na hora dos cozinhados que tudo tinha de ser à sua maneira e eu, não sabendo que maneira era essa, preferia não me encontrar por perto.

               Passei a minha infância e adolescência sem me aproximar por aí além dessa divisão da casa, entrando, sorrateiramente, de vez em quando, apenas para agarrar num pacote de bolachas ou tirar um sumo do frigorífico. Aos dezassete anos, quando saí de casa, para ir estudar para Lisboa, recordo-me perfeitamente de me perguntar como me iria alimentar, e até pensava, tonta e esperançosa, que me tornaria uma top model, afinal, estava mais perto de passar fome do que fazer grandes repastos.

               Lá me fui safando. Aprendi com uma amiga com quem morei nos primeiros anos a fritar um bife, a ligar o forno para pôr uma lasanha congelada, a descascar batatas sem cortar os dedos e a fazer arroz sem queimar o fundo do tacho. Nesses primeiros tempos ensinaram-me logo a regra de ouro: com um refugado, que é como quem diz, um bocadinho de azeite, cebola e alho, tudo sabe melhor. A partir daí, em princípio, não tem como falhar. Não é como ir jantar a um restaurante de um grande chef, mas também não envergonha o suficiente para deixar de convidar os amigos mais próximos para uma refeição.

               Durante muito tempo, cozinhei com o rosto fechado, sempre impaciente e aborrecida. Ainda que dividisse casa, cada uma cozinhava para si (ou então até cozinhavam para mim e eu lavava a loiça de todas) e aquele momento entre tachos e panelas assemelhava-se a um sacrifício do qual não conseguia retirar retorno suficiente para que o deixasse de ser: não sabia assim tão bem e, na medida em que só eu é que comia, também não tinha o prazer da companhia e do elogio.

               Quando terminei a Faculdade e entrei no mercado de trabalho, arrendei o meu primeiro apartamento e já não havia amiga que me ajudasse ou a quem eu pudesse pedir que, naquela noite, mais cansada ou triste do que o habitual, desenrascasse qualquer coisa para eu jantar. Assim sendo, ou jantava sopa (fiz a minha primeira, conforme a minha avó me ensinou ao telefone, aos vinte anos) ou ia jantar fora. Foram bons tempos, porque começar a trabalhar me trouxe a independência financeira necessária para ir a bons restaurantes (que é como quem diz ao italiano de Alvalade, cujo cozinheiro nunca foi a Itália e é nepalês), e a solidão de morar sozinha impulsionou a minha sociabilidade e permitiu-me ter conversas à mesa com amigos que hoje recordo com saudades.

               No entanto, há mais de um ano, apaixonei-me. Muito! Assim meio loucamente, como dizem que deve ser, de querer agarrar em mim e nele (que tem tanto de santo como de sortudo, quero eu crer!) e fazer a volta ao Mundo. De um lado para o outro e de cima para baixo. Apaixonei-me tanto e tão intensamente, que quando pernoitou pela primeira vez em minha casa, e falávamos dos nossos sonhos, aptidões e receios, creio ter mencionado que cozinhava como ninguém. Ora, era mentira… Ainda hoje o é! Mas sabia que ele estava habituado a comer bem e eu não queria parecer menos.

               O tempo foi voando. Entre o teletrabalho, cada um numa ponta da mesa da minha sala, que nos ocupava a maioria dos dias, e o facto de tudo estar fechado e não podermos sair de casa, fui começando a cozinhar. De vez em quando ele também fazia qualquer coisa, mas eu queria tanto impressioná-lo (e ainda quero hoje!) que me oferecia constantemente para ser eu a cozinhar, e lá procurava no meu telemóvel uma receita um bocadinho mais complexa e rezava para que ele gostasse e me dissesse que eu estava pronta para casar!

               Hoje em dia moramos juntos. E eu cozinho todos os dias, ao almoço e ao jantar. Vamos muitas vezes jantar fora, mas já não é porque eu não aguento mais comer bifes de peru com massa ou porque queimei o que tinha ao lume: reservamos essas saídas com o intuito de namorarmos e serem noites diferentes, mas em casa comemos bem!

Tudo isto para dizer que hoje em dia adoro cozinhar, cozinho muito, mas não cozinho assim tão bem. Ele elogia tudo o que eu faço (embora insista em não o fazer em frente às nossas famílias – coisa que eu tanto queria e que acho que é por isso que não acontece!) e eu encontrei um momento meu, de paz e serenidade, onde penso sobre a vida e coloco amor.

               Continuo a esforçar-me, e de tempos em tempos não corre bem e a comida fica perto de uma porcaria (vale-me não ter como provadora oficial uma criança, que mo diria sem receios), mas cada vez que trago o que preparei para a mesa de jantar fico muito contente por vê-lo a admirar as minhas invenções e tantas outras apenas a rir-se do facto de ser, outra vez, dourada no forno (uma das minhas especialidades). Gosto de preparar tudo com amor, de cortar a cebola e o alho, de saltear o peixe ou os bifes com umas pitadas de sal grosso e pimenta branca, e de acompanhar a refeição com um copo de vinho tinto.

               Acho que quando se sente muito amor (assim para o assolapado e desmedido), é preciso ir encontrando formas de o libertar e de o entregar ao outro. Ora, como não temos vida para andar sempre aos beijos, nem talvez fosse sensato fazê-lo ainda que tivéssemos tempo para tal, lá o vou engordando (não muito, pois que todos insistem em referir que desde que moramos juntos ele está mais magro!) com os meus cozinhados feitos de amor.

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Mesa de Natal

Nos primeiros cinco anos da minha vida fomos seis. Depois veio mais um, e aí eu tive a certeza de que o número sete representava a perfeição, pois não cabia mais ninguém naquela mesa, e a conversa era tanta e tão boa que um oitavo membro poderia estragar a sinfonia delicada e bonita que havíamos construído com amor e uma dose de paciência.

Nos anos seguintes, e até eu perfazer as minhas dezasseis primaveras, vivemos os sete, sentados à mesa, sentados no chão ao pé da árvore e do amor em forma de embrulho, ouvintes um dos outros e tantas vezes espetadores dos dramas que cada um criava. Nem sempre reinou a paz ou a ordem, mas a empatia e a admiração que nutrimos uns pelos outros nunca abandonou aquele rés-do-chão que nos acolhe ainda hoje.

Criámos tradições e fizemos uma promessa: o Natal que estávamos a viver era sempre melhor do que o anterior! Tornou-se obrigatório referi-lo (os meus avós mais do que qualquer um de nós), e por isso grande parte da noite da consoada era passada a dizer que "aquele Natal é que era", e a elogiar os presentes que tínhamos cuidadosamente escolhido oferecer uns aos outros. Segundo o meu avô, estamos em clara ascensão: já não oferecemos coisas desnecessárias ou supérfluas, e isso, para quem poupou a vida toda e não é fã do consumismo desenfreado, é uma vitória assinalável!

Durante mais de dez anos, foi assim. Os sete à mesa, a celebrar o Natal, a comer o bacalhau com as batatas regadas em azeite, a convencer a minha avó de que nada poderia estar melhor e a explicar à minha irmã (umas vezes mais pacientemente do que outras) que só deveríamos abrir os presentes depois das doze baladas. Os meus pais beijavam-se com a fugacidade de quem ainda não conhece na perfeição o sabor dos lábios um do outro e entre cantorias e abraços vivíamos aquela noite sem conhecermos o seu fim.

Um dia, e sem que nenhum de nós o esperasse, ficámos seis. Não foi no Natal, mas não nos deu tempo suficiente para o assimilarmos até lá. Não sei de quanto tempo precisaríamos, e talvez hoje, depois de sete Natais em que somos seis, possamos finalmente admitir que não era uma questão de tempo. Afinal, sete era o número da perfeição à mesa, mas nada fica mais perfeito por passarem sete anos.

Desde aí só somos seis. Por um lado estamos mais confortáveis (porque a mesa ainda é a mesma), mas eu sei que todos nós preferíamos estar apertadinhos. Temos todos os outros dias do ano para nos sentarmos com a distância que nos aprouver, e no Natal faz frio e apetece-nos mais do que em qualquer outra altura do ano estarmos perto daqueles que amamos.

Aos poucos, vamos retirando o "só" da equação, e dizemos orgulhosamente que somos seis. Recuperámos a alegria da mesa com a comida que vai sobrar, as nódoas do bom vinho tinto na toalha e as gargalhadas de quatro gerações diferentes, que lá vão contando as suas manhas e conquistas, tantas vezes admiráveis e tantas outras apenas surpreendentes, porque dois de nós têm mais de oitenta e outras duas menos de vinte e cinco anos.

Os meus avós deliciam-se com as histórias que eu e a minha irmã contamos, e eu aproveito esta criatividade que Deus me deu para inventar tantas outras que os façam rir e imaginar um Mundo que não tiveram oportunidade de conhecer. A minha mãe e o meu tio também dão o seu melhor, e entre o marisco de entrada e os sonhos de sobremesa, vão acrescentando um ou outro pormenor.

Este ano ainda somos seis. Tenho vinte e quatro anos, e nos últimos meses vários dos meus amigos perderam os seus avós. Faz parte da vida, e até eles dizem, num tom leve e sereno, que "já são muitos anos".

Sei que um dia seremos cinco, e talvez no ano seguinte apenas quatro. Depois voltaremos a ser cinco ou seis, e quiçá daqui a uns anos seremos mais de dez sentados à mesa e no chão, ao pé da árvore, naquele ou noutro rés-do-chão ou quinto andar.

A vida corre. A mesa pode ser sempre a mesma, mas nem sempre lá estaremos todos. Sentados, fisicamente. Mesmo que o número de pessoas se mantenha, é provável que haja alterações: ninguém substitui ninguém, mas quem chega vai ocupando os lugares vagos. Os que já partiram também lá estão, mas ao invés de ocuparem uma cadeira, preenchem-nos o coração e alma, deixando espaço para aqueles que, entretanto, integraram a família.

Talvez a magia dessa noite passe por aproveitá-la com a serenidade de quem sabe que o sete da perfeição não regressará, mas que existem outros números igualmente bonitos. 


quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Amor, sombra e cultura

Hoje estreia nos cinemas portugueses o filme "Sombra", do realizador Bruno Gascon, que conta com um elenco de luxo. Este filme é inspirado numa história real, que todos aqueles que têm mais de vinte anos certamente se recordam: o desaparecimento de Rui Pedro.

Rui Pedro desapareceu com 11 anos, em 1998. Na altura, eu acabara de completar o meu primeiro aniversário, por isso não creio ser possível ter-me apercebido. No entanto, ao longo dos anos fui assistindo às buscas, à angústia de uma mãe que se expôs em todos os meios de comunicação social, no seu melhor e no seu pior, com esperança e em desespero, e afirmo convictamente que, a par do desaparecimento da Maddie McCann, a busca por Rui Pedro moldou a minha infância e me fez ter medo de deixar de ver os meus pais na praia, no supermercado ou quando me diziam só para atravessar a estrada à porta da escola, pois tinham estacionado o carro do outro lado.

Uma das coisas mais tristes da nossa tristeza é que, por mais que os outros a sintam, não é delas. Quando acontece uma tragédia na vida de alguém, por mais empáticos que sejamos, e que nos imobilizemos para ajudar, que rezemos pela sua salvação, que desejemos as melhoras, os dias vão passando e o Mundo vai entregando-nos outras causas pelas quais lutar, outras tragédias para lamentar, e as nossas vidas, tão cheias de tudo, não nos permitem (e nós não nos permitimos) a continuar a colocar-nos na posição do outro, sendo essa uma posição de dor, de angústia e de sofrimento imensurável.

Não imagino o que será perder um filho, e se a dor de perder um pai me toca ao perto, a de enterrar quem gerámos parece-me demasiado para a vida continuar. Da mesma forma, não consigo imaginar como é que se vive na incerteza, na réstia de esperança, à mercê da bondade dos outros e tantas vezes da sua maldade, e vivi sempre angustiada todas as entrevistas a que assisti ou li de Filomena, mãe de Rui Pedro, que relatou, vezes e vezes sem conta, ter sido contactada com falsas pistas ou avistamentos de crianças, jovens e depois adultos semelhantes ao seu querido filho.

O processo de luto é complexo, e cada um vive-o como pode. O simbolismo de um funeral, o abraço dos que nos são queridos na hora do adeus, tudo isso grita que a vida, para quem cá fica, mudou. E ficará mudada para sempre. Não se ultrapassa, mas também ninguém vive enganado, esperançoso, iludido. O conhecimento e a consciência são uma arma; ao invés, a incerteza e a imaginação criam em nós sentimentos contraditórios, cenários pessimistas e, tantas vezes, uma visão destorcida da realidade, que nos alimenta e nos dá forças para continuarmos, até ao ponto em que já não nos mata a fome e nos dá certezas para desistirmos.

A mãe de Rui Pedro, numa entrevista recente, disse continuar a acreditar que ele está vivo. Sobre isso nada sei, mas espero que sim, e se, um dia, num momento mediático que marcará para sempre as nossas vidas, Rui Pedro reaparecer, escreverei que o amor de mãe salva, pois o Mundo de todos nós continuou a girar e apenas o dela parou, nestes anos em o continuou a procurar.

A arte tem um papel indiscritível na nossa vida. A cultura, num todo, para além de ser a identidade de um povo, é, tantas vezes, a voz que nos sussurra ao ouvido e nos recorda que há vida para além das nossas. Já ninguém fala de Rui Pedro, e se existiram alturas em que, na rua, consciente ou inconscientemente, procurávamos no meio da multidão o seu rosto ou o de Maddie, provavelmente hoje em dia poderíamos cruzar-nos na rua com eles e disso não darmos conta. Agora, com este filme, e ainda que se trate de ficção, voltaremos a falar de Rui Pedro, que era uma criança e hoje um adulto, que ainda que seja um retrato feito por especialistas é o rosto de milhares de crianças desaparecidas, e provavelmente hoje também, depois de vermos o filme, abraçaremos com mais força os nossos filhos, os nossos pais, os nossos amigos, e, penso eu cá para mim, agradeceremos a oportunidade de saber quem está morto e quem está vivo, pois não deve haver dor maior que não saber se quem mais amamos partiu para sempre ou ainda poderá regressar.

O Orçamento de Estado para 2022 está a ser discutido agora. Politiquices à parte, prevê-se que à cultura seja atribuída 0,25% da despesa consolidada da Administração Central. 0,25% é não só um número demasiado pequeno para todos aqueles que precisam de apoios e incentivos após uma pandemia sem precedentes, como uma falta de respeito para todos aqueles que, à sua maneira e com o seu talento e trabalho, nos trazem vida às nossas. 0,25% é muito pouco para todos aqueles que têm ideias, que têm vontade, e que querem, como Bruno Gascon, recordar histórias importantes.

Hoje estreia o filme “Sombra”. É um filme português e, ao contrário daquilo que habitualmente é associado ao nosso cinema (tantas vezes injustamente), não é apenas para uma elite intelectual, para aqueles que frequentam a Cinemateca (na Rua Barata Salgueiro 39, em Lisboa), ou para os críticos do Público. É para todos aqueles que acompanharam a família do Rui Pedro, da Maddie McCann e de tantas outras crianças desaparecidas. É para que nos recordemos de que eles ainda não voltaram, para que demos graças às despedidas e à presença, e, na minha opinião, é acima de tudo para a Filomena, que tantas vezes lamenta já ninguém se recordar do seu filho amado.

A arte também tem este papel e menosprezar quem a faz é, de alguma forma, menosprezar quem a consome e precisa dela para se recordar dos que precisam de nós. 

terça-feira, 12 de outubro de 2021

Montanhas, vento, calmaria, reflexo, tu

 

               Daqui só vejo as montanhas e o vento a passar por elas como quem passa por qualquer outra coisa. Daqui só vejo as montanhas, o vento, e a calmaria que só se sente quando toda gente está a dormir e eu sou a única que já despertou de um sono mais ou menos profundo. Daqui só vejo as montanhas, o vento, a calmaria, e o meu reflexo, que pode não corresponder àquilo que os outros veem, mas que estou certa representar-me na perfeição. Daqui só vejo as montanhas, o vento, a calmaria, o meu reflexo, e se olhar para trás vejo-te a ti, pois deixei os estores abertos e a luz não te incomoda, pelo que dormes como se nada fosse contigo, e eu tenho esta oportunidade única de te observar sem me agarrares, já tímido, consciente das tuas imperfeições e receoso que elas me apaixonem menos que tudo o resto.

               Viro as minhas costas às montanhas, ao vento, à calmaria e ao meu reflexo e observo-te como se não te olhasse todos os dias, como se não te admirasse com a mesma atenção com que te fitei da primeira vez em que teimei nos teus olhos e nos teus gestos. Admiro a tua respiração mais lenta, as tuas pernas cobertas por aquele branco cor de pérola, as tuas mãos juntas como se fosses dos que pede o que quer que seja, e o teu rosto pousado na almofada, leve e tranquilo, quiçá a sonhar comigo ou com a nossa vida noutras, e temo que nenhuma deles seja suficiente para todo o amor que tenho para te dar.

               Olho-te com estes olhos que já viram tanta coisa, mas que nunca viram nada assim, como tu, e temo que a vida não nos permita viver todos os sonhos que dissemos querer realizar quando, na noite anterior, às estrelas, demos as mãos e prometemos ser agentes das mudanças que queremos nas nossas vidas. Olho-te com estes olhos que já olharam para gente que acreditaram amar e espero que eles nunca percam este filtro, que tantos apelidam como tal por crerem desaparecer com o tempo, pois que o chamam de paixão, e detenho-me no teu corpo a remexer-se na cama e desejo que o teu sono seja profundo e te permita descansares. Admiro a tua capacidade de trabalho, o esforço e o amor que empregas no que fazes, a esperança que trazes aos outros, as palavras que não dizes por receio que magoem quem quer que seja, a força do teu abraço e o sorriso que faz sorrir os outros, porque de pretensioso nada tem, e apenas traz a fé que me dizes, ironicamente, não sentir. Penso muitas vezes, no meu íntimo, e perdoa-me não to dizer tantas vezes quanto as sinto, pois acredito que não te traz conforto, mas alguém com a tua luz não pode certamente não ter sido iluminado por Deus. Ainda que não o vejas, Ele fez-te à semelhança Dele, e tantas vezes vejo na tua bondade aquela que acredito que os mais crentes procuram em si, sem sucesso, e a ti, que não a procuras, tem-la em abundância, e que bonita é a tua alma!

               Espero que não acordes, pois sei que precisas de descansar, mas tudo em mim te quer beijar e abraçar e dizer coisas que já disse, ou inventar coisas e criar histórias que te façam rir, depois deste tempo tu dizes que já conheces todas as minhas histórias e eu receio que um dia descubras que por aí há tantas outras que também têm histórias, ainda por cima que não conheces, e que vás ouvi-las, curioso como és. Quero acordar-te porque receio que a vida seja demasiado curta para estarmos novamente os dois, em silêncio, de mãos dadas, irrequietas como as nossas vidas, a olhar para as estrelas, a viver a vida como se fôssemos só nós os dois, cientes de que nada mais importante se passará lá fora, o que nos permite permanecermos ali, impávidos e serenos, sem medos e com a certeza de que não há amor tão mágico quanto o nosso, quanto aquilo que vivemos aqui, este aqui que criamos quando fugimos.

               Detenho-me em ti e oiço a tua voz a dizer-me que sou bonita, e penso que gostava que te visses como eu te vejo. Quem me dera conseguir mostrar-te como tu és, quem me dera ter sempre as palavras na boca e dar-lhes voz, quem me dera ser fogo nos dias em que precisas de calor e ser gelo naqueles em que te parece que tudo à tua volta se pode alastrar como uma labareda incontrolada. Quem me dera saber o que queres no silêncio, e não ficar em silêncio quando precisas que fale. Quem me dera não ter medo que a vida acabe e disfrutá-la com a mesma intensidade que vivo ciente da tua finitude, e desejo mais que tudo que descanses ainda que espere que não percamos tempo e possamos fazer tudo aquilo que vamos prometendo.

               Daqui só vejo as montanhas, o vento, a calmaria, o meu retrato, só te vejo a ti e vejo a nossa vida. A que já passou e a que acredito termos pela frente. Vejo-nos a mobilar a nossa casa, e imagino-nos a mudarmo-nos para a próxima. Vejo-nos a concretizarmos os nossos objetivos, e imagino-nos a conspirar os que se seguem. Vejo o teu sorriso quando te disse o meu primeiro “sim”, e imagino aquele que farás com os próximos.

               Haverá vezes em que teremos mais, e outras em que escassearão algumas coisas. Nem sempre nos havemos de amar da mesma forma, e talvez haja dias em que não te escreverei com esta intensidade, como quem debita as palavras por ter medo que estas me sufoquem como corda rija e insistente. Não seremos sempre beijos e abraços, e creio que já existiram dias em que não me viste como o reflexo em que me encontro, porque ainda que queiramos que o Mundo sejamos nós, há Mundo para além destas montanhas, e deste vento, e desta calmaria, e do meu reflexo e do teu sono profundo, em que repousas da forma que te vejo.

               Nesses dias, em que provavelmente não encontrarei as palavras certas, os gestos que acalmariam as tuas ou as minhas dores, e em que o filtro da paixão esteja desfigurado, recorda-te, conforme eu me recordarei, que houve uma manhã em que dormias e eu fitei-te e pensei que não podia ter mais sorte, pois que o amor da minha vida repousa nos seus sonhos e eu vivo-os acordada, a olhar para ti.

              

terça-feira, 14 de setembro de 2021

Uma horta no topo da montanha

Uma das coisas mais difíceis da vida será, certamente, ser satisfeito (e eventualmente pensar nisso e não sentir culpa). Olhar para o que nos rodeia e ficarmos contentes. Observarmos o meio em que nos encontrarmos e pensarmos que nada mudaríamos ali, nem acolá. Há momentos de contemplação que quase se assemelham a essa paz que todos tentamos esticar ao máximo: o final de uma tarde de praia em que o sol teima em demorar-se, o gole numa cerveja gelada numa esplanada completa de amigos, uma música que sabemos de cor cantada no carro aos berros com as janelas abertas. São aqueles momentos em que a única coisa que os estraga é o facto de sabermos que vão acabar, porque se vivêssemos só o presente, e conseguíssemos concentrarmo-nos apenas e só nele, estaríamos a saboreá-los como nunca.

Há quem repita, incessantemente, que um dos truques para se viver feliz é ser-se insatisfeito. Que faz parte do processo de superação pessoal e profissional, o procurar outras coisas, o querer chegar a outros sítios, o estar constantemente a pugnar pela mudança e pela evolução. Ser insatisfeito é aquele defeito que facilmente se lança numa entrevista de emprego, não tão ridículo como, provavelmente, dizermos que a nossa maior falha é sermos demasiado perfecionistas, mas talvez igualmente preocupante se partilhado com um psicólogo.

Apelidam quem não se conforma de corajoso, e se estamos bem com o que nos rodeia não estaremos, com toda a certeza, a ver tudo o que nos rodeia, porque nada está no seu lugar, e há tantas causas, tantas injustiças, tantas coisas que são como são mas deviam ser de outra forma, que quem está bem como está, não devia estar bem com quem é.

Parece-me cansativo. Sinto-me cansada. Às vezes só gostava de estar bem como estou, ainda que isso pudesse significar, para os outros, menos ambição, menos presença, menos garra. Não só pelos outros, mas também por mim: quem me dera conseguir ser mais agradecida. E menos insatisfeita. Desejava que o meu privilégio me fizesse apenas sentir privilegiada, e não com responsabilidade acrescida: acerca de mim, perante os outros. Que paradoxo este, de quem se queixa por ver o Mundo, quando sente FOMO por não ser convidada para uma festa.

Na verdade (e trata-se apenas da minha verdade, isto é, da perceção que tenho das coisas – tal como a opinião – é sempre nossa, daí não ser preciso dizer-se “na minha opinião pessoal”), cada vez que se fala em felicidade pura imagino alguém que está no topo de uma montanha, rodeado apenas de quinze ou vinte pessoas, mais perto do sol do que eu, que não conhece a pobreza, mas também não faz ideia do que é ter posses; que não ambiciona sair dali, mas também não conhece outro lugar; que tem fé, ainda que não se prenda demasiado a pensar sobre ela. É não conhecer o Mundo ao ponto de não saber que ele existe. Não ter objetivos impostos pela sociedade (que não rejeito, quero muito ser parte!), não ter medos, qual criança que mergulha sem saber nadar, não ter sonhos (ou tê-los e serem mais simples do que os nossos). Parece mais leve, mais bonito.

Não me interpretem mal: padeço do mesmo mal, sempre insatisfeita e descontente, mas escrevo o que me vai na alma, ainda que quem comande este ser seja uma cabeça que não dorme de tanto pensar. Só sinto que às vezes é bom parar e tentar ser só feliz, ainda que nem tudo esteja em ordem. Não é um apelo à mediocridade, nem à apatia, é só que o Mundo nos vai engolindo com tantas desigualdades, com tantos problemas, com tantas coisas que precisam de mudar, que às vezes parece que estar bem, ou querer ficar-se apenas um pouco onde se está, a ser apenas o que se é, nos traz um sentimento de culpa, quiçá polvilhado com uma dose de ignorância e absurdez, que cria em mim um desejo (louco e provavelmente agora hipster) de ir para o campo e começar uma horta.

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Álbuns de recordações

Estávamos sentados à mesa e a minha avó pediu-nos que fôssemos para o sofá, pois queria mostrar-nos aquilo que a tinha ocupado naquela manhã. Era domingo e tínhamos acabado de almoçar. Como em todos os outros domingos, tínhamos chegado por volta da uma da tarde, e o final da refeição marcava a hora de saída do meu avô e do meu tio, que religiosamente se encaminham até ao café do Senhor Diamantino, para a bica com os que também lá param todos os dias. Qual toque de exército, que estes dois não precisam que ninguém os chame para saberem que está na hora de marcharem para outro sítio!

Sentámo-nos no sofá e a minha avó trouxe um saco cheio de fotografias, soltas de álbuns antigos e pouco cuidadas. Despejou-o atrapalhadamente, e aquele tapete, gasto pelo tempo, ficou repleto de imagens, alguns papéis e mil e uma recordações. Começámos a ver cada uma das fotografias, por vezes em silêncio, saudosos, outra vez questionando onde tinham sido tiradas, por que raio estava o meu avô, sempre tão sorridente e alegre, com um ar tão carrancudo na maioria dos retratos, e nenhum de nós pareceu querer levantar-se, mesmo que isso implicasse a bica esfriar ou chegarmos atrasados aos nossos compromissos.

Quando se é jovem, e se nasce na geração cibernética, das redes sociais e do digital, nem sempre se dá a devida atenção ao papel, à fotografia impressa e ao álbum datado e com descrições, na parte de trás, dos locais e das pessoas que o compõe. Por isso, ao longo do tempo que lá passámos, a tocar nas fotografias e a fazer perguntas sobre os momentos em que foram captadas, a minha avó repetiu insistentemente que as deveríamos guardar para sempre.

Vi a minha mãe em pequenina, de tranças compridas e pele muito branca, ainda sem as sardas que hoje fazem dela uma mulher tão bonita. O meu tio, que nos dias que correm tem uma barriga de quem não deixa nada no prato, magro, com um sorriso desafiador e rodeado de amigos que, até então, ainda não conheci. O meu avô e a minha avó, que se beijam, ainda hoje, impulsionados pela chama do amor e do companheirismo de toda uma vida, muito sérios, como quem pousa para um retrato de um palácio. Os meus pais, na altura da faculdade, a darem um beijo na boca enquanto fitavam a câmara, e o meu primeiro dia cá, ao colo da minha mãe e do meu pai, sentados na cama do hospital que me viu nascer. A minha irmã, talvez na sua primeira comunhão, com os olhos muito arregalados e um sorriso traquina.

Lá estávamos todos, mais novos, alguns com uns quilos a mais, outros com uns quilos a menos. O meu avô, que parece ter ficado mais feliz ao longo da vida (ou ter descoberto, tardiamente, que podia sorrir quando o fotografavam); a minha avó, que antigamente ia à praia e dormia numa barraquinha em São Martinho do Porto o dia todo; o meu pai e a minha mãe, muito queridos e sempre agarradinhos, talvez esperançosos de que se não se largassem a vida também não os separaria; a minha irmã, que, segundo os meus avós, sempre foi “esperta que nem um alho!”, e eu, de óculos no rosto desde que me lembro, sorriso fácil e olhos que querem ver o Mundo todo ao mesmo tempo.

Agarrei numa fotografia, das mais antigas que lá estavam, e elogiei a minha avó. Ainda que hoje seja bonita, tem oitenta e dois anos, e a vida passou por ela como vai passar por todos nós. Disse-me logo que sempre fora muito bonita, e que, de Lamego, não havia mulher mais encantadora, tendo sido por isso que o meu avô se apaixonara por ela. O meu avô, por sua vez, ao olhar para aquela imagem, recordou a vez em que a vira chegar com uma saia comprida, mais comprida que a das outras. Perguntou-lhe se, da próxima, poderia comprar tecido, mas fazer uma saia mais curta, utilizar só um pouco menos de tecido! A minha avó riu-se e beijou-lhe a careca. Todos nos rimos, pois o meu avô Carlos não perdeu o sentido de humor nos mais de cinquenta anos que já passaram desde que estão juntos, e se agora não lhe pede para usar uma saia mais curta, enquanto a ajuda a pôr a mesa, não se olvida de lhe implorar que não corra, porta fora, quando se despede sem a boina na cabeça, ainda que agradeça a preocupação constante da minha avó com a sua saúde.

Depois de vermos todas as fotografias, e de termos feito todas as perguntas que nos ocorriam, a minha avó, que tem tanto de cuidadora como de despachada, agarrou nelas novamente e colocou-as num saco, prometendo que, para a próxima, nos mostraria mais, afinal, “há gavetas e gavetas cheias delas!”. Não disse nada, mas pensei cá para mim, “para a próxima trago um álbum vazio e vamos guardá-las como deve de ser”.

terça-feira, 7 de setembro de 2021

Encontro de primos


“Gostava de voar”, dizia ele, enquanto levantava os braços, simulando o voo de um pássaro livre. “Gostava de voar e de ir até aos sítios onde assim não consigo ir”, dizia ele, com os olhos esbugalhados, enquanto a sua imaginação provavelmente já não tinha os pés no chão. A tia ria-se, e entre um sorriso maternal e um suspiro de cansaço, incentivava-o a voltar para o parque e a brincar com os restantes primos.

Ele lá foi, com os seus sete ou oito anos, primeiro apressado, obedecendo ao que lhe tinha sido dito, como se aquela ordem se equiparasse às que ouvia ao final do dia, depois das aulas, quando a mãe o mandava fazer os trabalhos de casa no quarto.

Correu até atingir o parque infantil e aí parou, olhando ao seu redor, como se tivesse medo de entrar, ou não soubesse o que fazer quando as outras crianças falassem com ele. Era um miúdo pequeno, de bermudas azuis e camisola com riscas, e os ténis denunciavam jogos de futebol e corridas de bicicleta sem fim. No entanto, naquela manhã, não parecia querer brincar.

A tia regressou ao computador, enquanto acendia um cigarro e olhava, ao longe, para aquelas crianças que tinha a seu cargo. As restantes brincavam, mas aquele miúdo, que queria voar e ir até aos sítios onde assim não conseguia, tinha-se sentado no banco de jardim em frente ao parque infantil e observava as brincadeiras dos outros, como que admirado com aquela forma de viver, tão simples e tão natural. Não teriam também eles sonhos, não se sentiriam tristes por não poderem voar?

Lá ficou, os primos iam e voltavam a correr, empurravam-se à vez no baloiço e, de tempos em tempos, chamavam-no. “Vem brincar!”, gritavam, já suados, com a pele brilhante, debaixo do sol de uma Lisboa a recomeçar, depois do verão deserto e em que tinha sido trocada pela Costa Alentejana e pelo Algarve dos mergulhos.

Passados alguns minutos, todos saíram e correram para ao pé da tia, que ocupava uma das mesas do Jardim das Amoreiras. Tinham fome e queriam não uma, não duas, mas três tostas mistas. Eram onze da manhã e a tia, que se vira obrigada a parar de novo o que estava a fazer, baixou o ecrã do seu portátil e disse-lhes que poderiam ir pedir apenas duas tostas, três copos de água e que tinham de se sentar um bocadinho, “que estão todos suados e, entretanto, é hora de almoço”.

“Gostavam de voar?”, perguntou aos primos, enquanto se empoleirava de bicos de pés e imitava, desta vez, um grande avião. Eram três, para além deste, e todos se atropelavam, respondendo, com aquela voz de criança sonhadora, que preferiam outros superpoderes. Um preferia ser muito forte, como um robot, porque assim “ninguém me podia fazer mal e eu também conseguia chegar a todo o lado porque ia ser muito muito alto”. O outro, talvez já com nove ou dez anos, exclamou que preferia ser um dinossauro, “com pés gigantes para pisar toda gente e corria rápido, ninguém me ia apanhar”. O último, mais traquina e com um penteado suportado por gel posto pelo pai, desajeitadamente, naquela manhã, dizia, com um ar sério e introspetivo, que o melhor seria ser invisível, dado que, daquela forma, “estaria sempre onde quisesse e nenhuma pessoa o poderia encontrar”.

Ouvi tudo aquilo deliciada, provavelmente com aquele sorriso que fazemos quando ouvimos as crianças a sonharem em voz alta e nos recordamos de quando nós o fazíamos. Dos tempos em que não tínhamos receio de partilhar o que queremos só porque mais ninguém o quer, ou porque as pessoas esperam outras coisas de nós, ou porque já não temos idade para ter sonhos e tudo em nós deve ser ambição e objetivos sérios, sedimentados em trabalho e num plano feito a esquadro e régua. Estava atenta e feliz por estar ali, a lembrar-me de que ainda há quem queira voar, e que existe uma geração que ainda não chegou a esta e acredita que poderá fazer e ser tudo. Feliz porque, quando se chega à idade em que já não nos é permitido sonhar tanto, muitas das vezes sentimos que também já não poderemos aprender com quem é mais novo do que nós, ou com quem simplesmente não tem o percurso que estamos a trilhar, e centramo-nos demasiado no que sabemos, no que conhecemos, no que queremos. Vamos para uma esplanada e as poucas vezes em que lá estamos sozinhos, não ouvimos o que se passa à nossa volta, porque tantas vezes fazemos de nós o nosso centro. E enquanto só nos ouvimos, e aos nossos amigos, aos nossos superiores, e à nossa família, as outras pessoas, com as suas vidas, lá vão falando em voz alta, no café, tantas vezes dizendo coisas que nos recordariam que ainda podemos sonhar.  

domingo, 9 de junho de 2019

Fé renovada

Nos últimos anos senti-me abandonada por Deus. E também eu O abandonei. A Ele, à Igreja. Deixei de crer, porque me parecia mais fácil descartar a possibilidade de Ele ter levado o meu pai, de Ele existir, conhecer a minha família, o amor que reinava na minha casa, o quanto eu e a minha irmã precisávamos de continuar a ser quatro, aqui, e, mesmo assim, o ter levado.
Tanta tristeza, tanta raiva, tanta frustração...
Nos últimos anos senti-me abandonada por Deus. Aborreci-me com Ele, e, cada vez que ia à Igreja não via Luz, os meus olhos carregados de lágrimas, que caíam mal entrava na Sua casa, diziam-me que Ele não podia existir, faziam-me questioná-Lo e as respostas às minhas perguntas não apareciam, mesmo quando, de joelhos, Lhe pedi que me desse algo, um sinal, uma justificação.
Tive uma crise de fé como nunca imaginei poder ter, porque, antes do meu pai ter falecido, acreditava com todo o meu coração em Deus, e professava, na minha humilde condição de jovem que pouco ou nada sabia da vida, aos mais novos, que Ele era o melhor amigo que tinham na vida, e que jamais lhes viraria as costas. A verdade é, durante estes anos, duvidei, virei-lhe as costas, e segui com a minha vida a crer não sei bem no quê, a fazer de tudo para nunca ter de Lhe falar, na cegueira da mágoa da orfandade.
Tive a sorte de me cruzar, também neste período, com pessoas com muita Fé. Com pessoas que me disseram que fosse outra vez à Igreja e que, ao invés de procurar o meu pai no meu coração, no conforto do meu lar, o procurasse mais perto de Deus, porque agora tenho os dois, juntos, a olhar por mim: os meus dois Pais. Convivi nos últimos anos com pessoas cujo coração e os olhos vêm Deus nas mais pequenas coisas, e que me disseram, várias vezes, também em mim O encontrarem. E agora, que olho para trás e me recordo de todas as conversas que travámos, e de me sentar junto a eles na Igreja, tenho a certeza de que não foi sorte, mas sim Deus, sábio como nunca outro Homem foi, a trazer até mim as pessoas que eu precisava para voltar a ir para junto Dele.
Nos últimos meses voltei a encontrá-Lo. Sinto-o de novo em mim, e como é bom entrar na Sua casa de novo e as lágrimas já não serem de angústia, mas sim de emoção, de agradecimento e de uma pequenez que não me inibe nem frusta, mas sim me recorda de que pertenço a algo maior, e que se a minha vida é assim, a Ele devo tanto do que sou e tenho. Por me ter enchido de força, mesmo quando eu não merecia o seu perdão, porque eu não O conseguia perdoar. Hoje, perante Ele, pedi-Lhe que me voltasse a aceitar na sua família, e tenho-o feito cada vez que nos encontramos, ao final da noite, em sussurro, de olhos fechados, na missa... E sei que Ele me aceita, e isto, este perdão, este amor que não finda, estes braços abertos para me acolher, é aquilo que, agora, mais Paz me traz à vida.
Que o meu coração continue aberto para receber o Espírito Santo, e que eu consiga viver mais à sua imagem, honrando-o não só a Ele, como também ao meu pai, que me educou nos valores e na Fé da Igreja Cristã.

terça-feira, 9 de abril de 2019

Cinco anos


Cinco anos. Meia década. O final do meu Ensino Secundário, o final da minha Licenciatura. Um livro em tua homenagem. A minha temporada em Buenos Aires. Os meus amigos, os desencontros e reencontros da minha vida. O Pedro. A Carolina que, está aqui, está na Faculdade. O Xavier nasceu, e eu sou, pela primeira vez, madrinha de batismo. Os avós, finalmente, aceitam ir a outro restaurante que não o “Menino”. O meu próximo livro que teimo em não ter coragem de acabar, por sentir que não está bom o suficiente.
Cinco anos. Cinco anos desde a última vez que te vi, desde que nos despedimos. Cinco anos desde o dia em que pusemos a mesa para, quando chegasses, jantarmos e, desde aí, nunca mais tirei quatro pratos do armário. Cinco anos desde que, pela última vez, senti o teu cheiro na casa, o cheiro de um perfume forte, o cheiro de um perfume de homem.
Cinco anos. Cinco anos desde que vos vi a beijarem-se pela última vez, e que, ao olhar para vós, me senti tão feliz por ser parte da nossa família, por ter sido concebida e crescido no vosso seio, por ser fruto do vosso amor.
Cinco anos. Cinco anos desde que deixei de te ver com os olhos, e de te tocar com as mãos: foi, exatamente há cinco anos, que te comecei a procurar com o meu coração, ciente de que, desde há cinco anos, esta seria a única forma de te encontrar.
Cinco anos. Cinco anos desde que falo de ti com os olhos humedecidos, mas com um sorriso que não engana ninguém: sou tão feliz por ser tua filha! Foram dezasseis anos tão bons, tenho tanta sorte em te ter!
Há uns dias, enquanto comia um gelado com um irmão mais novo de um amigo, ele perguntou-me por ti. Onde estava o meu pai, e porque não o seguias tu no Instagram. Também já a Teresinha, tua sobrinha, me tinha perguntado, uma vez, algo semelhante, queria saber onde andava o meu pai e porque é que nunca aparecia nos almoços de família. Expliquei a ambos, com palavras diferentes, pois têm seis anos a separá-los, que tu já tinhas partido e que, agora, apesar de eu não te ver, tu me vigias constantemente. A Teresinha ficou confusa, e, por isso, disse-lhe que tu eras uma estrela muito brilhante e que, quando eu me enganava no caminho, a conduzir cá por Lisboa, punha a cabeça de fora e procurava-te, tranquila por saber que, seguindo-te, chegarei sempre a casa.
Cinco anos até parece muito tempo. Parece-me mais ainda agora que escrevo e, na minha cabeça, sucedem imagens à velocidade da luz, como se me fosse possível, em breves minutos, recordá-los ao pormenor: tantos momentos, tantas alegrias, tantas pessoas, tanta coisa. Por outro lado, parece que foi ontem. Dói como se tivesse sido ontem, principalmente hoje.
No entanto, por cá, respeitamos a tua vontade, vivemos sob os teus ideais. Seguimos com a nossa vida, esforçamo-nos por ser felizes e é tão bom cada vez que eu dou por mim e não há esforço, só há felicidade, e é tão bom, com o passar dos anos, ir encontrando a serenidade que sempre tiveste . Cada uma de nós vai trilhando o seu caminho: não nos largamos, nunca, por nada. Caminhamos de mãos dadas contigo, e também é juntas, tantas vezes com os nossos amigos à mesa, que nos rimos ao te recordarmos em voz alta, ao celebrarmos a tua vida.
Cinco anos. Se calhar há pessoas que, desde há cinco anos, nunca mais te viram, nunca mais ouviram falar de ti. Não sei. Mas tu, pai, para nós, ainda estás aqui. Não partiste na totalidade, porque deixaste um bocadinho de ti em nós. Eu lá me vou esforçando para ser à tua imagem, e lá vou redondamente falhando. Mas tu habitas em mim. Eu sou a tua continuação. E sei que, sem dúvida, essa é a melhor parte de mim.

sábado, 8 de setembro de 2018

Sair de cena

Li há uns dias, algures neste Mundo cibernético em que todos nós viajamos, que é preciso saber sair de cena. Na altura, tal era a velocidade com que o meu dedo puxava a informação para baixo, esta frase passou por mim com a mesma rapidez com que a maioria das coisas nos passam pelos olhos.  Mas, mais tarde, quiçá entre a insónia e o despertar tardio da manhã seguinte, dei por mim a pensar acerca disto.
Todos nós ambicionamos, mais do que ter coisas na vida, ser coisas na vida. Ter um emprego que nos traga estabilidade económica, que nos traga realização pessoal, e, tantas vezes, que nos traga reconhecimento. Faz parte de viver, esta coisa, tantas vezes ingrata, de querer que alguém, independentemente do lugar que ocupe na hierarquia em que nos encontramos, ou na sociedade da qual fazemos parte, nos elogie, reconheça, parabenize. E enquanto em determinadas profissões, diria menos criativas ou liberais, não há alturas certas para sair de cena, existem outras em que a pausa tem tanto mérito como a permanência.
Se sou fotógrafo há dez anos e, de repente, o único sítio onde estou é uma garagem sem luz, porque deverei eu continuar a fotografar todos os dias? Quem quererá ver exposições consecutivas de paredes pintadas com aquele branco, que outrora não era sujo, ou da caixa de ferramentas espalhada no chão, ao pé de todas as coisas que para lá vamos arrumando, porque já não gostamos o suficiente delas para as termos na sala, mas também não as desprezamos ao ponto de as pormos no lixo?
E se eu for pintor e, de repente, não souber mais o que retratar nos meus quadros? Devo continuar a pintar só porque ainda tenho baldes de tintas coloridas, mesmo que veja tudo em tons de sépia?
Eu percebo o medo adjacente às pausas. As pessoas podem esquecer-nos, os nossos feitos podem perder importância, as pessoas com quem inevitavelmente competíamos ganham espaço, notoriedade. Aos poucos, param de perguntar por nós, substituem-nos, descobrem pessoas que fazem aquilo que nós fazíamos melhor que nós. E isso tudo pesa no momento em que optamos por parar: é um misto de receios e vontade de ser livre, de acreditar que respirar nos revigora e de medo que o sufoco de ver tudo a avançar sem nós se torne insuportável.
Eu decidi parar. E estive parada o tempo suficiente para perceber que tomei a decisão correta. Não tinha nada para escrever, para além de uma vontade desmedida de ser escritora. E isso não chega. É preciso continuar a ler muito, é preciso viver coisas novas, conhecer pessoas novas, sentir coisas novas. É preciso não ter horas para fazer tudo, é preciso ter tempo para não fazer absolutamente nada. Estava a escrever por presunção, pela pressão constante de ter de dizer algo. Não é assim que se escreve, não é assim que eu quero escrever. Eu não tinha nada para dizer, e por isso retirei-me. Retirei-me para viver, para ter coisas para contar, para me conhecer, porque isto de escrever às vezes confunde-nos, as personagens entranham-se e a vida real e a literária perturbam-se e frustam-se mutuamente. Agora estou pronta para começar de novo.
Agora estou livre, as minhas asas estão abertas e que bonita é a sensação de agarrar uma caneta e sentir o meu espírito a desenhar-se entre as linhas, e entrelinhas vou dizendo aquilo que não digo em voz alta.
As pausas são boas. Transformam-nos, limpam-nos a alma, mostram-nos a nossa pequenez, e confrontam-nos com a realidade: ninguém é inesquecível. Se querermos ter sucesso, temos de trabalhar. Mas se queremos viver, também temos de saber parar.

quarta-feira, 7 de março de 2018

Dias maus


                A vida tem dias em que nos prega partidas, em que nos põe à prova, em que nos mostra que nada está garantido e que, por vezes, a nossa pequenez será tão maior que nós que, por mais que tentemos superá-la, ela absorver-nos-á como se de uma onda gigante se tratasse. Nessas vezes, que tanto nos custam, decerto teremos quem nos diga que nos faz bem, que nos faz crescer, que nos torna pessoas melhores, com um olhar mais cru, e, portanto, mais real, daquilo que o Mundo é. Os nossos ouvidos, nessas vezes, serão surdos, independentemente dos nossos lábios desenharem palavras de compreensão e acatamento, e, por mais que queiramos encarar as derrotas, como encaramos as vitórias, a verdade é que ninguém procura as primeiras e, por isso, também não aguarda ansiosamente por recebê-las.
                A vida tem dias em que nos faz sentir sozinhos, por mais que as pessoas nos rodeiem, toquem, e façam sentir-se presentes. Há uma diferença muito grande entre estarem ao nosso lado, no mesmo espaço que nós, e connosco, disponíveis para os dias em que não estamos bem-humorados, em que queremos partilhar silêncio, em que não precisamos de nenhum plano para nos entreter, e em que nos contentamos com um copo de vinho vazio, esperando ser preenchido por nós… Como nós esperamos que alguém, ou algo, nos preencha.
                A nossa tristeza, por mais visível que seja, é nossa, e, quanto menos a virem, mais profundamente nos doerá. Ninguém gosta de viver na melancolia, naquela corda que não é firme entre estarmos a sorrir sem vontade, e a chorar sem motivos, mas a verdade é que, às vezes, nos habituamos. Os nossos lençóis são quentes, e lá fora chove… Se ficarmos em casa, recolhidos nos nossos pensamentos, provavelmente lembrar-nos-emos das razões pelas quais não saímos ontem, e que, por arrasto, nos farão ficar hoje.
                Eu sei que é complicado. Ter tudo delineado, projetar o futuro, dizer em voz alta que conseguiremos, que nada fugirá daquilo que tem de ser. E depois, às vezes, não é. Simplesmente não é como queríamos, não é como tínhamos imaginado, não é aquilo para que tínhamos trabalhado. E custa, claro que custa, todos nós ambicionamos coisas, lugares, experiências. Todos nós queremos ter recordações inesquecíveis, memórias inacreditáveis. E quando aqui é inverno, há um lugar qualquer no outro lado do Mundo em que o Sol radia, e isso frustra-nos, porque não gostamos de frio, porque parece que aqui o tempo não melhora. E isso adapta-se ao que sentimos, muitas vezes, em relação a tantas outras coisas… Parece que os outros chegaram primeiro, que conseguiram com menos esforço, que tiveram sorte. Às vezes estamos tão embrenhados nas nossas mágoas, nos nossos anseios, que caímos no ridículo de acreditar que somos os mais infelizes, aqueles a quem o azar não arreda pé, aqueles cujo destino não parece, em algum momento, cruzar-se com qualquer um dos objetivos que traçámos.
                É difícil, nestes dias, não desanimar. E é difícil, por vezes, não sentir inveja, não sentir que é injusto, não nos interrogarmos do porquê de não nos ter calhado a nós, de termos sido preteridos por outrem. É difícil, mas não é impossível de superar: é tão mais possível, e célere, quanto maiores formos. Porque dificuldades todos temos: dias assim, como estes que descrevo, em que tudo nos corre mal, são constantes na vida. Obstáculos farão, com toda a certeza, parte do caminho de todos nós. E aquilo que nos caracteriza, e que nos distingue dos outros, não são as peripécias que vivemos, não são os motivos que nos abalam, não são as lágrimas que nos molham a cara. Aquilo que nos caracteriza será sempre a forma como superamos as peripécias, como recuperamos dos abalos, como, caso sejamos mulheres, retocamos o rímel após as lágrimas.
                É normal que todos tenhamos, em alguma altura da nossa jornada, pedido, entre dentes, para não ter dias maus. Faz parte da natureza de ser humano não querer passar por coisas que o possam magoar, fazer sentir coisas como o desespero, a raiva, a solidão. No entanto, é inevitável. Só não sofre quem não vive, e quem não vive também já não tem dias bons, daqueles em que tudo nos corre de feição, e em que acreditamos que os maus não se repetirão.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Tempo

Quando os nossos olhares se cruzaram pela primeira vez, e com os teus olhos me abriste as portas para o Oceano, eu afastei-me, porque a imensidão dos mesmos assustou-me, e eu fujo de tudo aquilo que me parece maior que eu. Voltámos a encontrar-nos nos corredores da vida, que desde aí pareceram ser poucos e impossíveis de não serem os mesmos, e eu prometi a mim mesma que não levantaria o rosto, com receio de que me sugasses para esse teu Mundo que é tão diferente e tão mais complexo do que o meu. Sem sucesso, tocaste-me na face e disseste-me que nada temesse, porque estarias comigo quando as ondas maiores me cobrissem o rosto e me fizessem sentir que poderia não regressar à tona da água. Deixei-me embalar todas as vezes em que decidi não o fazer, e, sem dar por mim, perdi o Norte que há tanto tempo me guiava, sem surpresas.

Deste-me uma rosa e eu, com receio de que me ferisse com os seus espinhos, nunca a quis aceitar. Deixaste-a no muro de minha casa e, durante semanas a fio, ela lá ficou. Um dia, ganhei coragem, aproximei-me dela e agarrei-a, como se se tratasse de algo tão distante que já não estava ali. Com cuidado, tomei-a como minha e, tal como me tinhas dito, a mesma não tinha espinhos: era vermelha, linda como me dizias ser, mas já estava a murchar. Tinha esperado demasiado tempo… O cheiro dissipara-se no meio de todos os outros, a cor tinha começado a esvoaçar para se confundir com a cor das paredes rosa que cercavam o meu lar e as pétalas caíam à medida que os segundos passavam e eu a agarrava junto ao peito.

Também me ofereceste uma chávena de café, e pediste-me que a bebesse contigo, enquanto conversávamos sobre todos os planos que já tinhas feito para nós. Recusei, porque o café faz-me despertar, e eu queria continuar a dormir, como se a vida, para mim, estivesse a ser um sonho e a realidade me melindrasse, por nela ter de tomar decisões e não poder apenas fazer aquilo que me ia passando pela cabeça. Passadas umas semanas, antes de uma noite de estudo, em que descansar não era a solução, fui à mesa onde me tinhas convidado para nos sentarmos, em busca do café, e ele lá continuava, mas estava frio, e toda gente sabe que café frio é intragável. Tinha esperado demasiado tempo...

Convidaste-me para assistir contigo a um concerto de uma banda que sempre admirei; para ver um filme que estava em exibição no cinema durante um tempo; para visitar uma exposição, daquelas que vão passando pelos vários museus, e que, dias depois, sairía de Lisboa... E eu, com medo, na minha inocência de que os segundos passariam mais devagar se a eles não sucumbisse, deixei o tempo passar, e quando quis tornar-me dona dele, ele já tinha passado e eu, mais uma vez, tinha esperado demasiado tempo... A banda terminou a sua digressão, o filme saiu de cena e a exposição já está numa cidade longínqua da nossa.

Perdoa-me por crer que há sempre tempo. Por ter de pensar demasiado em tudo, e por ver, na impulsividade, uma sala escura que só iluminada pela razão se torna habitável para nós. Não me recrimines por esperar que os prados fiquem coloridos pela Primavera para neles passear, nem por aguardar pacientemente que o Inverno chegue para ficar um sábado inteiro em casa. Eu tenho medo. Tenho muitos medos. E a tua completude assustou-me, bem como o teu sorriso nervoso e o toque da tua mão na minha, sem que dessémos pelas mesmas a aproximarem-se. Tu não imaginas como quero esquecer o Mundo e encontrá-lo no teu abraço. Não imaginas como quero esquecer o Mundo e encontrá-lo no teu colo. Tu, por culpa minha, não imaginas como gosto de ti. Como me deixas num vazio abismático quando te vais embora, e em como desejei tantas vezes que ficasses quando te disse que não te queria comigo. Se soubesse que esperar demasiado findaria o tempo que temos, não tinha deixado que o tempo passasse.