“Gostava de voar”, dizia ele, enquanto levantava os braços, simulando o voo de um pássaro livre. “Gostava de voar e de ir até aos sítios onde assim não consigo ir”, dizia ele, com os olhos esbugalhados, enquanto a sua imaginação provavelmente já não tinha os pés no chão. A tia ria-se, e entre um sorriso maternal e um suspiro de cansaço, incentivava-o a voltar para o parque e a brincar com os restantes primos.
Ele lá foi, com os seus sete ou oito anos, primeiro apressado, obedecendo ao que lhe tinha sido dito, como se aquela ordem se equiparasse às que ouvia ao final do dia, depois das aulas, quando a mãe o mandava fazer os trabalhos de casa no quarto.
Correu até atingir o parque infantil e aí parou, olhando ao seu redor, como se tivesse medo de entrar, ou não soubesse o que fazer quando as outras crianças falassem com ele. Era um miúdo pequeno, de bermudas azuis e camisola com riscas, e os ténis denunciavam jogos de futebol e corridas de bicicleta sem fim. No entanto, naquela manhã, não parecia querer brincar.
A tia regressou ao computador, enquanto acendia um cigarro e olhava, ao longe, para aquelas crianças que tinha a seu cargo. As restantes brincavam, mas aquele miúdo, que queria voar e ir até aos sítios onde assim não conseguia, tinha-se sentado no banco de jardim em frente ao parque infantil e observava as brincadeiras dos outros, como que admirado com aquela forma de viver, tão simples e tão natural. Não teriam também eles sonhos, não se sentiriam tristes por não poderem voar?
Lá
ficou, os primos iam e voltavam a correr, empurravam-se à vez no baloiço e, de
tempos em tempos, chamavam-no. “Vem brincar!”, gritavam, já suados, com a pele
brilhante, debaixo do sol de uma Lisboa a recomeçar, depois do verão deserto e
em que tinha sido trocada pela Costa Alentejana e pelo Algarve dos mergulhos.
Passados
alguns minutos, todos saíram e correram para ao pé da tia, que ocupava uma das
mesas do Jardim das Amoreiras. Tinham fome e queriam não uma, não duas, mas
três tostas mistas. Eram onze da manhã e a tia, que se vira obrigada a parar de
novo o que estava a fazer, baixou o ecrã do seu portátil e disse-lhes que poderiam
ir pedir apenas duas tostas, três copos de água e que tinham de se sentar um
bocadinho, “que estão todos suados e, entretanto, é hora de almoço”.
“Gostavam
de voar?”, perguntou aos primos, enquanto se empoleirava de bicos de pés e
imitava, desta vez, um grande avião. Eram três, para além deste, e todos se
atropelavam, respondendo, com aquela voz de criança sonhadora, que preferiam
outros superpoderes. Um preferia ser muito forte, como um robot, porque assim “ninguém
me podia fazer mal e eu também conseguia chegar a todo o lado porque ia ser
muito muito alto”. O outro, talvez já com nove ou dez anos, exclamou que
preferia ser um dinossauro, “com pés gigantes para pisar toda gente e corria
rápido, ninguém me ia apanhar”. O último, mais traquina e com um penteado
suportado por gel posto pelo pai, desajeitadamente, naquela manhã, dizia, com
um ar sério e introspetivo, que o melhor seria ser invisível, dado que, daquela
forma, “estaria sempre onde quisesse e nenhuma pessoa o poderia encontrar”.
Ouvi
tudo aquilo deliciada, provavelmente com aquele sorriso que fazemos quando ouvimos
as crianças a sonharem em voz alta e nos recordamos de quando nós o fazíamos. Dos
tempos em que não tínhamos receio de partilhar o que queremos só porque mais
ninguém o quer, ou porque as pessoas esperam outras coisas de nós, ou porque já
não temos idade para ter sonhos e tudo em nós deve ser ambição e objetivos
sérios, sedimentados em trabalho e num plano feito a esquadro e régua. Estava
atenta e feliz por estar ali, a lembrar-me de que ainda há quem queira voar, e que
existe uma geração que ainda não chegou a esta e acredita que poderá fazer e
ser tudo. Feliz porque, quando se chega à idade em que já não nos é permitido sonhar tanto, muitas das vezes sentimos que também já não poderemos aprender com quem é
mais novo do que nós, ou com quem simplesmente não tem o percurso que estamos a
trilhar, e centramo-nos demasiado no que sabemos, no que conhecemos, no que
queremos. Vamos para uma esplanada e as poucas vezes em que lá estamos sozinhos, não
ouvimos o que se passa à nossa volta, porque tantas vezes fazemos de nós o
nosso centro. E enquanto só nos ouvimos, e aos nossos amigos, aos nossos superiores,
e à nossa família, as outras pessoas, com as suas vidas, lá vão falando em voz
alta, no café, tantas vezes dizendo coisas que nos recordariam que ainda
podemos sonhar.
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