Estávamos
sentados à mesa e a minha avó pediu-nos que fôssemos para o sofá, pois queria
mostrar-nos aquilo que a tinha ocupado naquela manhã. Era domingo e tínhamos
acabado de almoçar. Como em todos os outros domingos, tínhamos chegado por
volta da uma da tarde, e o final da refeição marcava a hora de saída do meu avô
e do meu tio, que religiosamente se encaminham até ao café do Senhor Diamantino,
para a bica com os que também lá param todos os dias. Qual toque de exército,
que estes dois não precisam que ninguém os chame para saberem que está na hora
de marcharem para outro sítio!
Sentámo-nos no
sofá e a minha avó trouxe um saco cheio de fotografias, soltas de álbuns antigos
e pouco cuidadas. Despejou-o atrapalhadamente, e aquele tapete, gasto pelo
tempo, ficou repleto de imagens, alguns papéis e mil e uma recordações. Começámos
a ver cada uma das fotografias, por vezes em silêncio, saudosos, outra vez questionando
onde tinham sido tiradas, por que raio estava o meu avô, sempre tão sorridente
e alegre, com um ar tão carrancudo na maioria dos retratos, e nenhum de nós
pareceu querer levantar-se, mesmo que isso implicasse a bica esfriar ou chegarmos
atrasados aos nossos compromissos.
Quando se é
jovem, e se nasce na geração cibernética, das redes sociais e do digital, nem
sempre se dá a devida atenção ao papel, à fotografia impressa e ao álbum datado
e com descrições, na parte de trás, dos locais e das pessoas que o compõe. Por
isso, ao longo do tempo que lá passámos, a tocar nas fotografias e a fazer
perguntas sobre os momentos em que foram captadas, a minha avó repetiu
insistentemente que as deveríamos guardar para sempre.
Vi a minha mãe
em pequenina, de tranças compridas e pele muito branca, ainda sem as sardas que
hoje fazem dela uma mulher tão bonita. O meu tio, que nos dias que correm tem
uma barriga de quem não deixa nada no prato, magro, com um sorriso desafiador e
rodeado de amigos que, até então, ainda não conheci. O meu avô e a minha avó,
que se beijam, ainda hoje, impulsionados pela chama do amor e do companheirismo
de toda uma vida, muito sérios, como quem pousa para um retrato de um palácio.
Os meus pais, na altura da faculdade, a darem um beijo na boca enquanto fitavam
a câmara, e o meu primeiro dia cá, ao colo da minha mãe e do meu pai, sentados
na cama do hospital que me viu nascer. A minha irmã, talvez na sua primeira
comunhão, com os olhos muito arregalados e um sorriso traquina.
Lá estávamos
todos, mais novos, alguns com uns quilos a mais, outros com uns quilos a menos.
O meu avô, que parece ter ficado mais feliz ao longo da vida (ou ter
descoberto, tardiamente, que podia sorrir quando o fotografavam); a minha avó,
que antigamente ia à praia e dormia numa barraquinha em São Martinho do Porto o
dia todo; o meu pai e a minha mãe, muito queridos e sempre agarradinhos, talvez
esperançosos de que se não se largassem a vida também não os separaria; a minha
irmã, que, segundo os meus avós, sempre foi “esperta que nem um alho!”, e eu,
de óculos no rosto desde que me lembro, sorriso fácil e olhos que querem ver o
Mundo todo ao mesmo tempo.
Agarrei numa fotografia, das mais antigas que lá estavam, e elogiei a minha avó. Ainda que hoje seja bonita, tem oitenta e dois anos, e a vida passou por ela como vai passar por todos nós. Disse-me logo que sempre fora muito bonita, e que, de Lamego, não havia mulher mais encantadora, tendo sido por isso que o meu avô se apaixonara por ela. O meu avô, por sua vez, ao olhar para aquela imagem, recordou a vez em que a vira chegar com uma saia comprida, mais comprida que a das outras. Perguntou-lhe se, da próxima, poderia comprar tecido, mas fazer uma saia mais curta, utilizar só um pouco menos de tecido! A minha avó riu-se e beijou-lhe a careca. Todos nos rimos, pois o meu avô Carlos não perdeu o sentido de humor nos mais de cinquenta anos que já passaram desde que estão juntos, e se agora não lhe pede para usar uma saia mais curta, enquanto a ajuda a pôr a mesa, não se olvida de lhe implorar que não corra, porta fora, quando se despede sem a boina na cabeça, ainda que agradeça a preocupação constante da minha avó com a sua saúde.
Depois de vermos todas as fotografias, e de termos feito todas as perguntas que nos ocorriam, a minha avó, que tem tanto de cuidadora como de despachada, agarrou nelas novamente e colocou-as num saco, prometendo que, para a próxima, nos mostraria mais, afinal, “há gavetas e gavetas cheias delas!”. Não disse nada, mas pensei cá para mim, “para a próxima trago um álbum vazio e vamos guardá-las como deve de ser”.
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