Não fui daquelas crianças que,
desde pequena, ajudou a mãe na cozinha ou a avó aos domingos a preparar o
almoço. Tal poderá dever-se ao facto de a minha mãe também não nutrir uma
paixão assolapada pela cozinha, ou por a minha avó ser tão exigente e
perfecionista na hora dos cozinhados que tudo tinha de ser à sua maneira e eu,
não sabendo que maneira era essa, preferia não me encontrar por perto.
Passei a minha infância e adolescência
sem me aproximar por aí além dessa divisão da casa, entrando, sorrateiramente,
de vez em quando, apenas para agarrar num pacote de bolachas ou tirar um sumo
do frigorífico. Aos dezassete anos, quando saí de casa, para ir estudar para
Lisboa, recordo-me perfeitamente de me perguntar como me iria alimentar, e até
pensava, tonta e esperançosa, que me tornaria uma top model, afinal, estava
mais perto de passar fome do que fazer grandes repastos.
Lá me fui safando. Aprendi com
uma amiga com quem morei nos primeiros anos a fritar um bife, a ligar o forno
para pôr uma lasanha congelada, a descascar batatas sem cortar os dedos e a fazer
arroz sem queimar o fundo do tacho. Nesses primeiros tempos ensinaram-me logo a
regra de ouro: com um refugado, que é como quem diz, um bocadinho de azeite, cebola
e alho, tudo sabe melhor. A partir daí, em princípio, não tem como falhar. Não
é como ir jantar a um restaurante de um grande chef, mas também não envergonha
o suficiente para deixar de convidar os amigos mais próximos para uma refeição.
Durante muito tempo, cozinhei com
o rosto fechado, sempre impaciente e aborrecida. Ainda que dividisse casa, cada
uma cozinhava para si (ou então até cozinhavam para mim e eu lavava a loiça de
todas) e aquele momento entre tachos e panelas assemelhava-se a um sacrifício
do qual não conseguia retirar retorno suficiente para que o deixasse de ser: não
sabia assim tão bem e, na medida em que só eu é que comia, também não tinha o prazer
da companhia e do elogio.
Quando terminei a Faculdade e entrei
no mercado de trabalho, arrendei o meu primeiro apartamento e já não havia
amiga que me ajudasse ou a quem eu pudesse pedir que, naquela noite, mais
cansada ou triste do que o habitual, desenrascasse qualquer coisa para eu jantar.
Assim sendo, ou jantava sopa (fiz a minha primeira, conforme a minha avó me ensinou
ao telefone, aos vinte anos) ou ia jantar fora. Foram bons tempos, porque começar
a trabalhar me trouxe a independência financeira necessária para ir a bons
restaurantes (que é como quem diz ao italiano de Alvalade, cujo cozinheiro
nunca foi a Itália e é nepalês), e a solidão de morar sozinha impulsionou a
minha sociabilidade e permitiu-me ter conversas à mesa com amigos que hoje
recordo com saudades.
No entanto, há mais de um ano,
apaixonei-me. Muito! Assim meio loucamente, como dizem que deve ser, de querer
agarrar em mim e nele (que tem tanto de santo como de sortudo, quero eu crer!)
e fazer a volta ao Mundo. De um lado para o outro e de cima para baixo.
Apaixonei-me tanto e tão intensamente, que quando pernoitou pela primeira vez
em minha casa, e falávamos dos nossos sonhos, aptidões e receios, creio ter
mencionado que cozinhava como ninguém. Ora, era mentira… Ainda hoje o é! Mas
sabia que ele estava habituado a comer bem e eu não queria parecer menos.
O tempo foi voando. Entre o
teletrabalho, cada um numa ponta da mesa da minha sala, que nos ocupava a
maioria dos dias, e o facto de tudo estar fechado e não podermos sair de casa, fui
começando a cozinhar. De vez em quando ele também fazia qualquer coisa, mas eu queria
tanto impressioná-lo (e ainda quero hoje!) que me oferecia constantemente para
ser eu a cozinhar, e lá procurava no meu telemóvel uma receita um bocadinho
mais complexa e rezava para que ele gostasse e me dissesse que eu estava pronta
para casar!
Hoje em dia moramos juntos. E eu
cozinho todos os dias, ao almoço e ao jantar. Vamos muitas vezes jantar fora,
mas já não é porque eu não aguento mais comer bifes de peru com massa ou porque
queimei o que tinha ao lume: reservamos essas saídas com o intuito de namorarmos
e serem noites diferentes, mas em casa comemos bem!
Tudo isto para dizer que hoje em dia adoro cozinhar, cozinho muito, mas
não cozinho assim tão bem. Ele elogia tudo o que eu faço (embora insista em não
o fazer em frente às nossas famílias – coisa que eu tanto queria e que acho que
é por isso que não acontece!) e eu encontrei um momento meu, de paz e
serenidade, onde penso sobre a vida e coloco amor.
Continuo a esforçar-me, e de
tempos em tempos não corre bem e a comida fica perto de uma porcaria (vale-me
não ter como provadora oficial uma criança, que mo diria sem receios), mas cada
vez que trago o que preparei para a mesa de jantar fico muito contente por vê-lo
a admirar as minhas invenções e tantas outras apenas a rir-se do facto de ser, outra
vez, dourada no forno (uma das minhas especialidades). Gosto de preparar tudo
com amor, de cortar a cebola e o alho, de saltear o peixe ou os bifes com umas
pitadas de sal grosso e pimenta branca, e de acompanhar a refeição com um copo
de vinho tinto.
Acho que quando se sente muito
amor (assim para o assolapado e desmedido), é preciso ir encontrando formas de
o libertar e de o entregar ao outro. Ora, como não temos vida para andar sempre
aos beijos, nem talvez fosse sensato fazê-lo ainda que tivéssemos tempo para
tal, lá o vou engordando (não muito, pois que todos insistem em referir que
desde que moramos juntos ele está mais magro!) com os meus cozinhados feitos de
amor.
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