sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Vinte e cinco

 

Querido pai,

Já não sei se isto aconteceu ou não, a minha memória traí-me tanto quanto a minha imaginação, mas creio que perguntaste o que seria de nós antes de descobrirmos que os médicos já não podiam fazer nada por ti. Quando me contaram que tinhas partido, disseram-me que as tuas últimas palavras foram estas, e isto tem tanto de profundamente triste como de poético (a poesia é tão triste, como a tristeza pode ser poema). É generoso, porque sabias que não estavas bem, mas só nós te importávamos; e é de um amor tão bonito e tão cuidadoso que, mesmo que isto não tenha acontecido, prefiro viver na ilusão de que o disseste. Magoa-me saber que tiveste a consciência da tua finitude, mas enaltece-me a ideia de que, nem aí, te esqueceste de nós.

Também eu me perguntei o que seria de nós, depois de tu o teres feito. Questionei-me, e questiono-me muitas vezes, do que seria de mim, e delas, depois de ficarmos as três, e continua a impressionar-me todos os dias existir sempre mais um, e termos aprendido a vivê-los com dignidade, esperança e alegria. Afinal estar bem não é consequência de se estar vivo, é um trabalho e requer engenho. Cá estamos nós, artesãs da vida e canalizadoras dos nossos sonhos, parafusa aqui e desenrosca ali, tem de ser, para nós não acabou e dar parte fraca é ofensivo depois de nos teres deixado com tanto cuidado. Não nos largaste à nossa sorte, poisaste-nos como se fôssemos flor num pedaço de terra nutrido, “é hora de crescerem e desabrocharem, reguem-se umas às outras, não se deixem esmorecer”.

Celebrar mais um ano, desde o ano em que te vi pela última vez, tornou-se doloroso. Não é o receio de estar a envelhecer (ainda não tenho idade para esse género de complexos), é o recordar de que não estás aqui e que não contarei com o teu beijo e com o teu abraço, nem no dia do meu aniversário. A morte é maléfica, filha da puta desengonçada, porque até no dia em que todos celebram a nossa vida não nos permite esquecermo-nos de que já foram mais. Ou que já tiveram todos presentes fisicamente. E isso, sem sombra de dúvidas, deve ser das suas maiores façanhas, e dos principais motivos pelos quais a detesto tanto.

Ontem fiz vinte e cinco anos. Sou muito parecida àquilo que imaginava ser, ainda que numa ou em tanta outra coisa quisesse ser diferente. Estou crescida, mas ainda estava disposta a ceder este ar mais adulto e responsável por um colo desde o carro estacionado na garagem até à minha cama no quarto, ou festinhas no sofá enquanto o Benfica joga. Não é justo perder isso só porque se cresce, não é uma escolha, e do meu presente e futuro sei eu.

Estou a fazer-me à vida, sem medos e com coragem de leão (perdoa-me, mas tive recentemente de me mudar para o Sporting por razões conjugais), por vezes em desfile, noutras aos tropeções. Recordo-me todos os dias de ti e tento ouvir aquilo que queres para mim. Não te culpo pelos azares que, de vez em quando, lá me acontecem, nem te censuro pela voz que sussurra no meu ouvido e me confunde as ideias. Quando perguntaste o que seria de nós, tenho a certeza de que sabias que, comigo, não tinhas de te preocupar por aí além. Sou de ir para a frente, a correr com sacos na mão e óculos riscados na cara, saíam daí (por favor) que estou a caminho dos meus sonhos. Também sabias que ia ter um dos melhores e mais estridentes clubes de fãs, família, amor e amigos, tudo junto e embrenhado, onde cabem dez a jantar cabem doze, e por isso a solidão não passaria sempre e só de um estado que tenho de romper com a força que digo ter. É-me fácil cair nela (e surpreendente como quem fala tanto e tão alto prefere, na maioria das vezes, o silêncio), mas também não podes tratar de tudo. Asas para voar, mas quem tem de voar sou eu.

Talvez um dia perca o hábito de te escrever sempre que celebro mais um ano. Para os que me rodeiam não sei se é bom, porque me imaginam triste e angustiada, e não quero que achem que não estou feliz e agradecia pelo carinho com que me abraçam neste dia em particular. Percebem, ou um dia perceberão, que nada substituí um pai, este que tive e tenho, mas cujo abraço já não posso ter.

Vemo-nos nos vinte e seis, ou noutro dia qualquer.

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