Querido pai,
Já não sei se isto aconteceu ou
não, a minha memória traí-me tanto quanto a minha imaginação, mas creio que
perguntaste o que seria de nós antes de descobrirmos que os médicos já não
podiam fazer nada por ti. Quando me contaram que tinhas partido, disseram-me
que as tuas últimas palavras foram estas, e isto tem tanto de profundamente
triste como de poético (a poesia é tão triste, como a tristeza pode ser poema).
É generoso, porque sabias que não estavas bem, mas só nós te importávamos; e é
de um amor tão bonito e tão cuidadoso que, mesmo que isto não tenha acontecido,
prefiro viver na ilusão de que o disseste. Magoa-me saber que tiveste a
consciência da tua finitude, mas enaltece-me a ideia de que, nem aí, te
esqueceste de nós.
Também eu me perguntei o que
seria de nós, depois de tu o teres feito. Questionei-me, e questiono-me muitas
vezes, do que seria de mim, e delas, depois de ficarmos as três, e continua a
impressionar-me todos os dias existir sempre mais um, e termos aprendido a
vivê-los com dignidade, esperança e alegria. Afinal estar bem não é
consequência de se estar vivo, é um trabalho e requer engenho. Cá estamos nós,
artesãs da vida e canalizadoras dos nossos sonhos, parafusa aqui e desenrosca
ali, tem de ser, para nós não acabou e dar parte fraca é ofensivo depois de nos
teres deixado com tanto cuidado. Não nos largaste à nossa sorte, poisaste-nos
como se fôssemos flor num pedaço de terra nutrido, “é hora de crescerem e
desabrocharem, reguem-se umas às outras, não se deixem esmorecer”.
Celebrar mais um ano, desde o ano
em que te vi pela última vez, tornou-se doloroso. Não é o receio de estar a
envelhecer (ainda não tenho idade para esse género de complexos), é o recordar
de que não estás aqui e que não contarei com o teu beijo e com o teu abraço,
nem no dia do meu aniversário. A morte é maléfica, filha da puta desengonçada,
porque até no dia em que todos celebram a nossa vida não nos permite
esquecermo-nos de que já foram mais. Ou que já tiveram todos presentes fisicamente.
E isso, sem sombra de dúvidas, deve ser das suas maiores façanhas, e dos
principais motivos pelos quais a detesto tanto.
Ontem fiz vinte e cinco anos. Sou
muito parecida àquilo que imaginava ser, ainda que numa ou em tanta outra coisa
quisesse ser diferente. Estou crescida, mas ainda estava disposta a ceder este
ar mais adulto e responsável por um colo desde o carro estacionado na garagem
até à minha cama no quarto, ou festinhas no sofá enquanto o Benfica joga. Não é
justo perder isso só porque se cresce, não é uma escolha, e do meu presente e
futuro sei eu.
Estou a fazer-me à vida, sem
medos e com coragem de leão (perdoa-me, mas tive recentemente de me mudar para
o Sporting por razões conjugais), por vezes em desfile, noutras aos tropeções.
Recordo-me todos os dias de ti e tento ouvir aquilo que queres para mim. Não te
culpo pelos azares que, de vez em quando, lá me acontecem, nem te censuro pela
voz que sussurra no meu ouvido e me confunde as ideias. Quando perguntaste o
que seria de nós, tenho a certeza de que sabias que, comigo, não tinhas de te
preocupar por aí além. Sou de ir para a frente, a correr com sacos na mão e
óculos riscados na cara, saíam daí (por favor) que estou a caminho dos meus
sonhos. Também sabias que ia ter um dos melhores e mais estridentes clubes de
fãs, família, amor e amigos, tudo junto e embrenhado, onde cabem dez a jantar
cabem doze, e por isso a solidão não passaria sempre e só de um estado que
tenho de romper com a força que digo ter. É-me fácil cair nela (e surpreendente
como quem fala tanto e tão alto prefere, na maioria das vezes, o silêncio), mas
também não podes tratar de tudo. Asas para voar, mas quem tem de voar sou eu.
Talvez um dia perca o hábito de
te escrever sempre que celebro mais um ano. Para os que me rodeiam não sei se é
bom, porque me imaginam triste e angustiada, e não quero que achem que não
estou feliz e agradecia pelo carinho com que me abraçam neste dia em
particular. Percebem, ou um dia perceberão, que nada substituí um pai, este que
tive e tenho, mas cujo abraço já não posso ter.
Vemo-nos nos vinte e seis, ou
noutro dia qualquer.
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