Penso muitas vezes sobre esta coisa estranha que é viver enquanto durmo. Nunca fui de sono fácil, já dizia a minha mãe que em pequena, quando, por hábito ou poupança, fazíamos a viagem de Leiria ao Algarve pela nacional, tinham de encostar o carro para me acordar porque, entre um sonho mais vocal ou um pesadelo que me fazia espernear, empurrava com uma força que não tinha acordada, a cadeirinha onde a minha irmã também dormia.
Os anos passaram, mas esta coisa estranha que é viver enquanto durmo, e de tantas vezes viver vidas piores, nunca desapareceu. Basta-me adormecer para acordar noutros sapatos que, normalmente, estão a pisar terrenos pouco férteis, e que, por isso, podem desabar a qualquer momento. Com o desenrolar da vida, os sonhos foram mudando, e até houve períodos em que os recordei menos, acordava só com aquela sensação de que não tinha descansado, porque durante a toda a noite tinha estado ocupada a cair de um penhasco, a encontrar toda a minha família desfigurada num beco escuro ou a constatar que tinha saído de casa de saia, mas sem roupa interior (o que me fez, durante muito tempo, verificar se não me tinha esquecido de nada antes de ir para a escola).
Uma vez contei a alguém que dormia muito mal. Não quero denegrir ou injustiçar o interlocutor, até porque já não me recordo de todo o contexto, mas creio que me respondeu que era por sonhar tanto que tinha esta vontade desenfreada de escrever (até gracejou que estas noites mal dormidas fariam de mim rica – não conhece, certamente, a dificuldade que é ser escritor e enriquecer desse ofício em Portugal).
Há dias melhores do que outros, em que sonho menos, ou em que sonho tanto quanto nos piores, mas não acordo melindrada, preocupada ou triste por aquilo que vivi enquanto dormia. Depende da fase que estou a viver, se me sinto mais ou menos ansiosa, se me cruzei na rua com alguém que me amedrontou pelo aspeto ou pelo olhar (verdade seja dita, não é assim tão comum, mas lá vai acontecendo de vez em quando), ou se me deito com um pensamento obscuro, mas comum em mim, de que sou finita e os que me rodeiam também.
A coisa boa de sonhar tanto, e de esses sonhos serem, normalmente, pesadelos, é que já vivi os piores cenários de tudo aquilo que me pode vir acontecer. Chegar a casa e toda a minha família e amigos terem morrido; escrever um livro e no dia em que o vou entregar ele desaparecer, deitando meses ou anos de trabalho para o lixo; acabar na rua, infeliz, sem dinheiro, sem laços, sozinha. Alguns destes cenários são bastante dramáticos; outros, por outro lado, não me parecem assim tão impossíveis (nem que seja por pensar tantos neles, vou encontrando razões, na vida que vivo acordada, que me podiam fazer lá chegar). Mas tem coisas boas, sim: tenho sempre cuidado a descer escadas, porque já caí mil vezes nos meus sonhos; guardo constantemente e em vários sítios o que escrevo, porque já vi a minha reação ao perder um projeto de um livro em que acreditava; e até sou capaz de dar mais valor aos que me rodeiam, por ter experienciado de uma maneira assustadoramente real, ainda que estivesse a dormir, o que é viver sem que nenhum deles esteja cá.
Curioso que nunca tenho sonhos bons, daqueles em que, suponho eu, acordaria e diria em voz alta “oh, que sonho!”. Sonhei uma vez, e lembro-me como se fosse hoje, que ia a um daqueles programas de televisão cantar, uma espécie de The Voice, mas com outras cores e luzes, e tinha uma voz maravilhosa, mesmo de arrepiar. Lá estava eu, a interpretar uma balada, e mal lançava a primeira nota, as quatro cadeiras viravam-se e o público estava emocionado, estonteado, completamente apaixonado pelo meu talento. É absurdo, até porque não sei cantar, mas acho que coincidiu com a fase em que, para além de querer ser escritora, queria dominar todas as outras artes. É um sonho que nunca mais tive, mas adorei a manhã seguinte a esta aventura.
Talvez seja fruto de uma imaginação fértil, ou reflexo de uma ansiedade crónica. Seja lá o que for, ao menos que valha para isto.
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