Daqui só vejo as montanhas e o
vento a passar por elas como quem passa por qualquer outra coisa. Daqui só vejo
as montanhas, o vento, e a calmaria que só se sente quando toda gente está a
dormir e eu sou a única que já despertou de um sono mais ou menos profundo.
Daqui só vejo as montanhas, o vento, a calmaria, e o meu reflexo, que pode não
corresponder àquilo que os outros veem, mas que estou certa representar-me na
perfeição. Daqui só vejo as montanhas, o vento, a calmaria, o meu reflexo, e se
olhar para trás vejo-te a ti, pois deixei os estores abertos e a luz não te
incomoda, pelo que dormes como se nada fosse contigo, e eu tenho esta
oportunidade única de te observar sem me agarrares, já tímido, consciente das
tuas imperfeições e receoso que elas me apaixonem menos que tudo o resto.
Viro as minhas costas às
montanhas, ao vento, à calmaria e ao meu reflexo e observo-te como se não te
olhasse todos os dias, como se não te admirasse com a mesma atenção com que te
fitei da primeira vez em que teimei nos teus olhos e nos teus gestos. Admiro a
tua respiração mais lenta, as tuas pernas cobertas por aquele branco cor de
pérola, as tuas mãos juntas como se fosses dos que pede o que quer que seja, e
o teu rosto pousado na almofada, leve e tranquilo, quiçá a sonhar comigo ou com
a nossa vida noutras, e temo que nenhuma deles seja suficiente para todo o amor
que tenho para te dar.
Olho-te com estes olhos que já
viram tanta coisa, mas que nunca viram nada assim, como tu, e temo que a vida
não nos permita viver todos os sonhos que dissemos querer realizar quando, na
noite anterior, às estrelas, demos as mãos e prometemos ser agentes das
mudanças que queremos nas nossas vidas. Olho-te com estes olhos que já olharam para
gente que acreditaram amar e espero que eles nunca percam este filtro, que
tantos apelidam como tal por crerem desaparecer com o tempo, pois que o chamam
de paixão, e detenho-me no teu corpo a remexer-se na cama e desejo que o teu
sono seja profundo e te permita descansares. Admiro a tua capacidade de
trabalho, o esforço e o amor que empregas no que fazes, a esperança que trazes
aos outros, as palavras que não dizes por receio que magoem quem quer que seja,
a força do teu abraço e o sorriso que faz sorrir os outros, porque de
pretensioso nada tem, e apenas traz a fé que me dizes, ironicamente, não
sentir. Penso muitas vezes, no meu íntimo, e perdoa-me não to dizer tantas
vezes quanto as sinto, pois acredito que não te traz conforto, mas alguém com a
tua luz não pode certamente não ter sido iluminado por Deus. Ainda que não o
vejas, Ele fez-te à semelhança Dele, e tantas vezes vejo na tua bondade aquela
que acredito que os mais crentes procuram em si, sem sucesso, e a ti, que não a
procuras, tem-la em abundância, e que bonita é a tua alma!
Espero que não acordes, pois sei
que precisas de descansar, mas tudo em mim te quer beijar e abraçar e dizer
coisas que já disse, ou inventar coisas e criar histórias que te façam rir,
depois deste tempo tu dizes que já conheces todas as minhas histórias e eu
receio que um dia descubras que por aí há tantas outras que também têm
histórias, ainda por cima que não conheces, e que vás ouvi-las, curioso como és.
Quero acordar-te porque receio que a vida seja demasiado curta para estarmos
novamente os dois, em silêncio, de mãos dadas, irrequietas como as nossas
vidas, a olhar para as estrelas, a viver a vida como se fôssemos só nós os
dois, cientes de que nada mais importante se passará lá fora, o que nos permite
permanecermos ali, impávidos e serenos, sem medos e com a certeza de que não há
amor tão mágico quanto o nosso, quanto aquilo que vivemos aqui, este aqui que
criamos quando fugimos.
Detenho-me em ti e oiço a tua voz
a dizer-me que sou bonita, e penso que gostava que te visses como eu te vejo.
Quem me dera conseguir mostrar-te como tu és, quem me dera ter sempre as
palavras na boca e dar-lhes voz, quem me dera ser fogo nos dias em que precisas
de calor e ser gelo naqueles em que te parece que tudo à tua volta se pode alastrar
como uma labareda incontrolada. Quem me dera saber o que queres no silêncio, e
não ficar em silêncio quando precisas que fale. Quem me dera não ter medo que a
vida acabe e disfrutá-la com a mesma intensidade que vivo ciente da tua
finitude, e desejo mais que tudo que descanses ainda que espere que não
percamos tempo e possamos fazer tudo aquilo que vamos prometendo.
Daqui só vejo as montanhas, o
vento, a calmaria, o meu retrato, só te vejo a ti e vejo a nossa vida. A que já
passou e a que acredito termos pela frente. Vejo-nos a mobilar a nossa casa, e imagino-nos
a mudarmo-nos para a próxima. Vejo-nos a concretizarmos os nossos objetivos, e
imagino-nos a conspirar os que se seguem. Vejo o teu sorriso quando te disse o
meu primeiro “sim”, e imagino aquele que farás com os próximos.
Haverá vezes em que teremos mais,
e outras em que escassearão algumas coisas. Nem sempre nos havemos de amar da
mesma forma, e talvez haja dias em que não te escreverei com esta intensidade,
como quem debita as palavras por ter medo que estas me sufoquem como corda rija
e insistente. Não seremos sempre beijos e abraços, e creio que já existiram
dias em que não me viste como o reflexo em que me encontro, porque ainda que
queiramos que o Mundo sejamos nós, há Mundo para além destas montanhas, e deste
vento, e desta calmaria, e do meu reflexo e do teu sono profundo, em que
repousas da forma que te vejo.
Nesses dias, em que provavelmente
não encontrarei as palavras certas, os gestos que acalmariam as tuas ou as
minhas dores, e em que o filtro da paixão esteja desfigurado, recorda-te,
conforme eu me recordarei, que houve uma manhã em que dormias e eu fitei-te e
pensei que não podia ter mais sorte, pois que o amor da minha vida repousa nos
seus sonhos e eu vivo-os acordada, a olhar para ti.
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