quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Amor, sombra e cultura

Hoje estreia nos cinemas portugueses o filme "Sombra", do realizador Bruno Gascon, que conta com um elenco de luxo. Este filme é inspirado numa história real, que todos aqueles que têm mais de vinte anos certamente se recordam: o desaparecimento de Rui Pedro.

Rui Pedro desapareceu com 11 anos, em 1998. Na altura, eu acabara de completar o meu primeiro aniversário, por isso não creio ser possível ter-me apercebido. No entanto, ao longo dos anos fui assistindo às buscas, à angústia de uma mãe que se expôs em todos os meios de comunicação social, no seu melhor e no seu pior, com esperança e em desespero, e afirmo convictamente que, a par do desaparecimento da Maddie McCann, a busca por Rui Pedro moldou a minha infância e me fez ter medo de deixar de ver os meus pais na praia, no supermercado ou quando me diziam só para atravessar a estrada à porta da escola, pois tinham estacionado o carro do outro lado.

Uma das coisas mais tristes da nossa tristeza é que, por mais que os outros a sintam, não é delas. Quando acontece uma tragédia na vida de alguém, por mais empáticos que sejamos, e que nos imobilizemos para ajudar, que rezemos pela sua salvação, que desejemos as melhoras, os dias vão passando e o Mundo vai entregando-nos outras causas pelas quais lutar, outras tragédias para lamentar, e as nossas vidas, tão cheias de tudo, não nos permitem (e nós não nos permitimos) a continuar a colocar-nos na posição do outro, sendo essa uma posição de dor, de angústia e de sofrimento imensurável.

Não imagino o que será perder um filho, e se a dor de perder um pai me toca ao perto, a de enterrar quem gerámos parece-me demasiado para a vida continuar. Da mesma forma, não consigo imaginar como é que se vive na incerteza, na réstia de esperança, à mercê da bondade dos outros e tantas vezes da sua maldade, e vivi sempre angustiada todas as entrevistas a que assisti ou li de Filomena, mãe de Rui Pedro, que relatou, vezes e vezes sem conta, ter sido contactada com falsas pistas ou avistamentos de crianças, jovens e depois adultos semelhantes ao seu querido filho.

O processo de luto é complexo, e cada um vive-o como pode. O simbolismo de um funeral, o abraço dos que nos são queridos na hora do adeus, tudo isso grita que a vida, para quem cá fica, mudou. E ficará mudada para sempre. Não se ultrapassa, mas também ninguém vive enganado, esperançoso, iludido. O conhecimento e a consciência são uma arma; ao invés, a incerteza e a imaginação criam em nós sentimentos contraditórios, cenários pessimistas e, tantas vezes, uma visão destorcida da realidade, que nos alimenta e nos dá forças para continuarmos, até ao ponto em que já não nos mata a fome e nos dá certezas para desistirmos.

A mãe de Rui Pedro, numa entrevista recente, disse continuar a acreditar que ele está vivo. Sobre isso nada sei, mas espero que sim, e se, um dia, num momento mediático que marcará para sempre as nossas vidas, Rui Pedro reaparecer, escreverei que o amor de mãe salva, pois o Mundo de todos nós continuou a girar e apenas o dela parou, nestes anos em o continuou a procurar.

A arte tem um papel indiscritível na nossa vida. A cultura, num todo, para além de ser a identidade de um povo, é, tantas vezes, a voz que nos sussurra ao ouvido e nos recorda que há vida para além das nossas. Já ninguém fala de Rui Pedro, e se existiram alturas em que, na rua, consciente ou inconscientemente, procurávamos no meio da multidão o seu rosto ou o de Maddie, provavelmente hoje em dia poderíamos cruzar-nos na rua com eles e disso não darmos conta. Agora, com este filme, e ainda que se trate de ficção, voltaremos a falar de Rui Pedro, que era uma criança e hoje um adulto, que ainda que seja um retrato feito por especialistas é o rosto de milhares de crianças desaparecidas, e provavelmente hoje também, depois de vermos o filme, abraçaremos com mais força os nossos filhos, os nossos pais, os nossos amigos, e, penso eu cá para mim, agradeceremos a oportunidade de saber quem está morto e quem está vivo, pois não deve haver dor maior que não saber se quem mais amamos partiu para sempre ou ainda poderá regressar.

O Orçamento de Estado para 2022 está a ser discutido agora. Politiquices à parte, prevê-se que à cultura seja atribuída 0,25% da despesa consolidada da Administração Central. 0,25% é não só um número demasiado pequeno para todos aqueles que precisam de apoios e incentivos após uma pandemia sem precedentes, como uma falta de respeito para todos aqueles que, à sua maneira e com o seu talento e trabalho, nos trazem vida às nossas. 0,25% é muito pouco para todos aqueles que têm ideias, que têm vontade, e que querem, como Bruno Gascon, recordar histórias importantes.

Hoje estreia o filme “Sombra”. É um filme português e, ao contrário daquilo que habitualmente é associado ao nosso cinema (tantas vezes injustamente), não é apenas para uma elite intelectual, para aqueles que frequentam a Cinemateca (na Rua Barata Salgueiro 39, em Lisboa), ou para os críticos do Público. É para todos aqueles que acompanharam a família do Rui Pedro, da Maddie McCann e de tantas outras crianças desaparecidas. É para que nos recordemos de que eles ainda não voltaram, para que demos graças às despedidas e à presença, e, na minha opinião, é acima de tudo para a Filomena, que tantas vezes lamenta já ninguém se recordar do seu filho amado.

A arte também tem este papel e menosprezar quem a faz é, de alguma forma, menosprezar quem a consome e precisa dela para se recordar dos que precisam de nós. 

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