Hoje estreia
nos cinemas portugueses o filme "Sombra", do realizador Bruno Gascon,
que conta com um elenco de luxo. Este filme é inspirado numa história real, que
todos aqueles que têm mais de vinte anos certamente se recordam: o
desaparecimento de Rui Pedro.
Rui Pedro
desapareceu com 11 anos, em 1998. Na altura, eu acabara de completar o meu
primeiro aniversário, por isso não creio ser possível ter-me apercebido. No
entanto, ao longo dos anos fui assistindo às buscas, à angústia de uma mãe que
se expôs em todos os meios de comunicação social, no seu melhor e no seu pior,
com esperança e em desespero, e afirmo convictamente que, a par do
desaparecimento da Maddie McCann, a busca por Rui Pedro moldou a minha infância
e me fez ter medo de deixar de ver os meus pais na praia, no supermercado ou
quando me diziam só para atravessar a estrada à porta da escola, pois tinham
estacionado o carro do outro lado.
Uma das
coisas mais tristes da nossa tristeza é que, por mais que os outros a sintam,
não é delas. Quando acontece uma tragédia na vida de alguém, por mais empáticos
que sejamos, e que nos imobilizemos para ajudar, que rezemos pela sua salvação,
que desejemos as melhoras, os dias vão passando e o Mundo vai entregando-nos
outras causas pelas quais lutar, outras tragédias para lamentar, e as nossas
vidas, tão cheias de tudo, não nos permitem (e nós não nos permitimos) a
continuar a colocar-nos na posição do outro, sendo essa uma posição de dor, de angústia
e de sofrimento imensurável.
Não imagino o
que será perder um filho, e se a dor de perder um pai me toca ao perto, a de
enterrar quem gerámos parece-me demasiado para a vida continuar. Da mesma
forma, não consigo imaginar como é que se vive na incerteza, na réstia de
esperança, à mercê da bondade dos outros e tantas vezes da sua maldade, e vivi
sempre angustiada todas as entrevistas a que assisti ou li de Filomena, mãe de
Rui Pedro, que relatou, vezes e vezes sem conta, ter sido contactada com falsas
pistas ou avistamentos de crianças, jovens e depois adultos semelhantes ao seu
querido filho.
O processo de
luto é complexo, e cada um vive-o como pode. O simbolismo de um funeral, o
abraço dos que nos são queridos na hora do adeus, tudo isso grita que a vida,
para quem cá fica, mudou. E ficará mudada para sempre. Não se ultrapassa, mas
também ninguém vive enganado, esperançoso, iludido. O conhecimento e a
consciência são uma arma; ao invés, a incerteza e a imaginação criam em nós
sentimentos contraditórios, cenários pessimistas e, tantas vezes, uma visão destorcida
da realidade, que nos alimenta e nos dá forças para continuarmos, até ao ponto
em que já não nos mata a fome e nos dá certezas para desistirmos.
A mãe de Rui
Pedro, numa entrevista recente, disse continuar a acreditar que ele está vivo. Sobre
isso nada sei, mas espero que sim, e se, um dia, num momento mediático que
marcará para sempre as nossas vidas, Rui Pedro reaparecer, escreverei que o
amor de mãe salva, pois o Mundo de todos nós continuou a girar e apenas o dela
parou, nestes anos em o continuou a procurar.
A arte tem um
papel indiscritível na nossa vida. A cultura, num todo, para além de ser a
identidade de um povo, é, tantas vezes, a voz que nos sussurra ao ouvido e nos
recorda que há vida para além das nossas. Já ninguém fala de Rui Pedro, e se
existiram alturas em que, na rua, consciente ou inconscientemente, procurávamos
no meio da multidão o seu rosto ou o de Maddie, provavelmente hoje em dia
poderíamos cruzar-nos na rua com eles e disso não darmos conta. Agora, com este
filme, e ainda que se trate de ficção, voltaremos a falar de Rui Pedro, que era
uma criança e hoje um adulto, que ainda que seja um retrato feito por
especialistas é o rosto de milhares de crianças desaparecidas, e provavelmente
hoje também, depois de vermos o filme, abraçaremos com mais força os nossos
filhos, os nossos pais, os nossos amigos, e, penso eu cá para mim, agradeceremos
a oportunidade de saber quem está morto e quem está vivo, pois não deve haver
dor maior que não saber se quem mais amamos partiu para sempre ou ainda poderá
regressar.
O Orçamento
de Estado para 2022 está a ser discutido agora. Politiquices à parte, prevê-se
que à cultura seja atribuída 0,25% da despesa consolidada da Administração
Central. 0,25% é não só um número demasiado pequeno para todos aqueles que
precisam de apoios e incentivos após uma pandemia sem precedentes, como uma
falta de respeito para todos aqueles que, à sua maneira e com o seu talento e
trabalho, nos trazem vida às nossas. 0,25% é muito pouco para todos aqueles que
têm ideias, que têm vontade, e que querem, como Bruno Gascon, recordar
histórias importantes.
Hoje estreia
o filme “Sombra”. É um filme português e, ao contrário daquilo que
habitualmente é associado ao nosso cinema (tantas vezes injustamente), não é
apenas para uma elite intelectual, para aqueles que frequentam a Cinemateca (na
Rua Barata Salgueiro 39, em Lisboa), ou para os críticos do Público. É para
todos aqueles que acompanharam a família do Rui Pedro, da Maddie McCann e de tantas
outras crianças desaparecidas. É para que nos recordemos de que eles ainda não
voltaram, para que demos graças às despedidas e à presença, e, na minha
opinião, é acima de tudo para a Filomena, que tantas vezes lamenta já ninguém
se recordar do seu filho amado.
A arte também tem este papel e menosprezar quem a faz é, de alguma forma, menosprezar quem a consome e precisa dela para se recordar dos que precisam de nós.
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