Ia todos os dias àquele café, ao pé do jardim, que o fazia acreditar,
entre um gole do café a escaldar e os fones que colocava nos ouvidos, que
estava mais afastado do centro da cidade do que os seus restantes sentidos
indicavam. Sentava-se com as pernas cruzadas em cima da cadeira de metal, sem
ambicionar encontrar uma posição confortável, semelhante à que teria em sua
casa, no sofá, e esperava sem grandes pressas que alguém lhe perguntasse o que
queria beber. Nessa altura, que por vezes até o irritava pela inconveniência,
ora que estava a meio de um capítulo, ora detido em pensamentos menos mundanos,
pedia um café curto, sem princípio, em chávena fria. Um conjunto de exigências
que não se revertiam num líquido melhor, mas que faziam sempre o empregado rir-se,
qual caricatura de exigentes divas que também iam àquele estabelecimento, e que
tudo pediam sem um sorriso de troça no final.
Depois de ler dois ou três capítulos, e aí já acompanhado por uma água
das pedras com uma rodela de limão, levantava-se e encaminhava-se até ao cesto
repleto de jornais, perto da máquina do tabaco, para agarrar cada um deles e
regressar à mesa. À sua volta, talvez se perguntassem do porquê de querer ler
todos eles, ao invés de escolher apenas um, ou dois ou três com caráter diferente:
uma coisa era procurar um jornal desportivo, outro nacional e outro que
versasse sobre o Mundo; outra coisa, e essa era a coisa que ele fazia, era
agarrar em todos eles, dispô-los em cima da mesa e procurar exatamente a mesma
notícia em cada um, esperançoso de que todos eles não tivessem sido escritos
com base na mesma agência noticiosa ou não fossem todas fruto dos mesmos
excertos de determinadas declarações ou entrevistas. Não era que não confiasse
no que diziam, mas já que tinha tempo, preferia conhecer todas as versões da
história.
Com o passar dos anos, e tornando-se aquele momento uma rotina não só
sua, como também de todos os que lá trabalhavam e por lá também paravam, acabou
por pedir que lhe guardassem os jornais do dia anterior, e já não os lia no
próprio dia, mas no dia seguinte. Coisa estranha, talvez possam pensar, pois
que este senhor não sabia o que se passava hoje, mas estava sempre ao corrente
do que acontecera ontem. No entanto, para ele, que via as notícias como
histórias e não confiava sempre nelas como sendo realidade, guardarem-lhe os
jornais do dia anterior (que, se não fossem seus, iriam para o lixo),
permitia-o ter novas tarefas. Agora não só os lia, como também ia recortando,
auxiliado pela tesoura que guardava no bolso do casaco no inverno ou no dos
calções no verão, para depois colar cada uma das notícias, lado a lado, no
caderno de mais de mil páginas que havia comprado numa papelaria ao final da
sua rua.
Esta nova tática que adotara, e que lhe ocupava tanto mais tempo quantos
mais jornais surgiam (e não se olvidava ele de imprimir em casa também os
jornais online, alheio à quantidade de árvores que para esse hobby seriam
mortas), tornaram-no cada vez mais desconfiado. Para ele não se tratava disso,
que rejeitava liminarmente se de tal fosse acusado, mas de uma curiosidade
incessante, de uma necessidade impossível de satisfazer de saber sempre mais,
de descobrir mais um pouco. E a verdade é que quando se procura, encontra-se.
Foi aqui que tudo começou. Este senhor, a quem poderemos chamar de José,
para efeitos de esta ser uma história para sempre recordada, encontrou novas
notícias. Pesquisou e viu mais coisas, mas deixou de se preocupar com as suas
fontes. Bastava que dissesse o que quer que fosse, e que parecesse verdade, para
que ele a tomasse como certa… Ou, nos dias em que acordava com os pés de fora,
mentira. Ora havia fome em Angola, ora tudo não passava de propaganda da oposição
ao governo, que passados quase cinquenta anos desde a Independência queriam assumir
o poder. Ora os impostos tinham subido, ora a carga fiscal tinha baixado para
valores nunca vistos e o povo se tinha simplesmente tornado forreta. A verdade
e a mentira passaram de valores absolutos para opiniões facilmente alteráveis.
Houve um período em que o José era o homem mais informado do seu bairro, mas
com o tempo tornou-se também ele uma fonte de notícias duvidosas, que divulgava
nas suas redes sociais ou até naquela mesma mesa do café.
A realidade e a ficção começaram
a confundir-se e, com o passar do tempo, assoberbado por tudo o que lia e
começara a ver não só na televisão, como em vídeos espalhados pelas redes
sociais e pelo Youtube, sentia-se cada vez mais assustado. O Mundo ia acabar, cada
pessoa que chegava à cidade onde ele sempre morara queria roubar-lhe o emprego
e, quem sabe, os órgãos dos seus familiares mais próximos, e as alterações
climáticas eram mentira (revelação que o deixara bastante frustrado depois de
tantos anos a reciclar e a tomar duches rápidos ao invés de longos banhos!).
Como era muita coisa e o tempo não esticava, parou de ler as notícias na
íntegra e focou-se apenas nos títulos: podia não estar a inteirar-se de tudo,
mas também achava que desta forma pouco lhe escaparia. Para além disto, passou
a preferir ler os comentários no Facebook, ao invés de abrir os links: assim
alguém lia a notícia por ele e o resumo era, certamente, de confiança. Porque
haveria alguém de comentar uma notícia com uma reação que não lhe fizesse jus?
Depois havia uma questão curiosa,
que acabou por perceber passados uns meses nas redes sociais: todos concordavam
com ele! Cada nova publicação que lhe aparecia para ler, cada vídeo que lhe era
sugerido. O algoritmo: o melhor-amigo de quem detesta discutir (ou alargar os
seus horizontes).
E foi assim que o José deixou de
acreditar no que quer que fosse. Porque durante um longo período da sua vida
acreditou em tudo. Deixou de filtrar os meios através dos quais conhecia a
realidade, as suas fontes e a sua credibilidade. Não interessava se quem falava
estava apoiado por uma estrutura de comunicação séria, regulada, ou se era o
seu vizinho Alexandre, que também era ótimo a espalhar a palavra e sabia sempre
do que se passava no Oriente através de uns links de uns fóruns para os quais o
convidava. Tudo podia ser verdade, ou não passar de um grande embuste. Pelo
sim, pelo não, não gostava de pretos; pelo sim, pelo não, o buraco do ozono era
uma invenção; pelo sim, pelo não, a pandemia tinha sido feita em laboratório
por um grupo de chineses maléficos; pelo sim, pelo não, o onze de setembro
tinha sido uma encenação; pelo sim, pelo não, e porque tudo estava mal e as
soluções mais demoradas levavam-lhe mais tempo a percebê-las, apoiava quem para
elas tinha uma explicação rápida e bastante óbvia.
Deixou de acreditar no que
tentavam incutir-lhe, e passou a ver tudo e todos como grandes profetas ou
propagandistas de uma verdade que não era a sua verdade. Porque ao contrário do
que lhe tinham dito, não existia apenas uma; cada um tinha a sua e era através
dela que se devia reger. Agora não valia de nada os filhos, ou até os netos,
dizerem-lhe que Portugal era um bom país para se viver: o José sabia a verdade.
Sabia que, mais cedo ou mais tarde, as minorias iam vencer, e até já tinha dito
à sua neta Leonor que ela tinha de parar de brincar com os carrinhos do irmão,
ou então levá-la-ia ao médico, ciente de que quem brinca com carrinhos são os
meninos e se ela não gostasse de bonecas talvez fosse homossexual e teria de
ser curada. Tudo coisas que aprendera na internet e que os jornais físicos,
esses que no passado lia no café ao pé do jardim, lhe ocultaram quase a vida
toda.
Hoje o José tem uma visão
distorcida do Mundo, pois acredita em tudo e duvida do que resta. Prefere os leads
ao corpo do texto, e os debates em que uma das partes grita e diz supostos
factos fáceis de assimilar ao invés de discursos mais pedagógicos e demorados.
Por tudo o que viu e leu, não acredita na palavra daqueles que se dizem sérios,
e prefere dar a sua atenção aos que pugnam ter sido calados a vida toda.
Sente-se mais empático com os últimos, por se considerar conhecedor de coisas
que os outros não conhecem e não ser, ainda assim, convidado para comentar na
televisão a atualidade. Não está satisfeito com o estado do Mundo, e menos
contente ainda com tudo aquilo que desconhecia quando se cingia a ler aquilo
que a maioria lê. Afinal, agora, ele sente que sabe muito mais.
A desinformação fê-lo perder a
esperança, mas também o fez ganhar uma quantidade de coisas que considera
imensuráveis. Entre elas, a certeza de que está sempre correto, de que mais
ninguém o enganará e de que todos os que o rodeiam são tão ou mais tolos do que
aquilo que pensam. Afinal, continuam a acreditar que o que passa na televisão é
verdade, nos jornalistas que escrevem sobre o país e o Mundo e que veem as suas
peças impressas e distribuídas em cafés como aquele a que ia.
“Todos tolos”, menos o José.
Nota de autora:
A desinformação é um dos grandes
perigos da atualidade. Devemos querer estar informados, mas temos de saber
escolher onde e através de que meios o fazemos. A era digital levanta perigos
muito sérios, que devem fazer-nos refletir enquanto sociedade. Para que nenhum
de nós se torne o José.
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