quarta-feira, 6 de maio de 2015

Feita de sonhos

Quando somos pequenos acreditamos que, um dia, teremos o Mundo aos nossos pés. É uma sensação fantástica aquela de acreditar que nunca é tarde de mais, e que ainda não chegou a nossa vez, "mas que está para chegar". Acreditamos que os dias maus são só para os outros e que os acidentes e as doenças são "coisas dos nossos primos muitos afastados". O tempo vai passando e, durante muitos anos, nós somos sonhos, apenas sonhos. Vivemos um dia de cada vez não com medo do dia seguinte, mas porque queremos aproveitar tudo ao máximo, sem pressas, na esperança garrida de que haverá sempre mais um dia, e que, para nós, o tempo é infindável. As tristezas são sol de pouca dura, e a chuva é fantástica porque rega o quintal dos nossos avós. Não vemos noticiários, e quando vemos não percebemos, mas "lá em casa vemos cada vez menos porque os meus pais dizem que são só desgraças". Não percebemos, aliás, muitas das vezes achamos que os adultos só podem ser disparatados, porque o Mundo não é nada como eles dizem! Avisam-nos para termos cuidado, pedem-nos para olharmos para os dois lados quando atravessamos a estrada, mas a verdade é que nós acreditamos que os carros vão parar e, se a bola que o João chutou vai para o meio da estrada, corremos sem medo para a apanhar, antes que a mãe dele ralhe por a bola se ter furado! Somos tão inocentes, tão felizes. A ignorância faz de nós donos do Mundo. Uma ignorância tão boa, tão saudável. Faz parte de nós ser assim. Ser sonhos, ser feitos de sonhos. Querer chegar à Lua como quem vai à padaria do Tio Zé e acreditar que vamos ser médicos e cabeleireiros e, quem sabe, jogadores profissionais de ténis de mesa. Ambicionamos tantas profissões, ter uma vida tão ocupada, com tanto trabalho, que nem nos lembramos que, caso conseguíssemos ser tudo aquilo que dizemos querer ser, mal teríamos tempo de nos sentarmos no sofá a ver os desenhos animados que tanto gostamos! Não obstante, adultos, escusam de nos dizer, quando somos crianças, que não podemos ser quatro profissões ao mesmo tempo: não queremos saber, simplesmente queremos ser!, e, quando se é criança, isso é o suficiente. Os nossos pais choram quando alguém parte e nós não percebemos o porquê de tantas lágrimas porque na catequese dizem-nos que "os melhores vão para o céu primeiro". Os nossos pais ralham-nos quando não estudamos ou quando tiramos más notas e nós ficamos realmente magoados, porque só nós sabemos o que estudámos (mesmo que tenha sido pouco, podíamos ter feito mil coisas mais interessantes quando pegámos nos livros!) e, para além disso, não precisamos de matemática para ser polícias! 
Temos tantos sonhos. Somos feitos deles, e de ilusões, e de histórias que impreterivelmente vamos escrevendo e nas quais fazemos ilustrações lindíssimas e cheias de cor, "tal e qual o Mundo é".

Aos poucos, como quem sobe pela primeira vez as escadas íngremes do palácio da Princesa Diana, vamos apercebendo-nos de algumas coisas e algumas delas, ai!, "quem nos dera nunca perceber!". Vamos perdendo muitas das ilusões que nos enchiam o coração de esperança e quando, ao jantar, os nossos pais insistem em pôr o noticiário, começamos a compreender o que os jornalistas dizem, com aquelas vozes ensaiadas e verdades escondidas. Na catequese, obrigam-nos, muitas vezes, a acreditar em coisas que não nos explicam e a Beatriz, que sempre foi mais adulta que nós, está a dizer que "não acredita no que não vê". Na escola disseram-me que não posso ser duas coisas ao mesmo tempo e que se neste país já conseguir ser uma devo dar-me por sortuda. Quando tiro uma má nota já não é preciso os meus pais me ralharem: fico mais tristes que eles, afinal, é o meu futuro que está em jogo! Tudo conta. Temos de nos aplicar. De lidar com pessoas de quem não gostamos e que, muitas das vezes, não nos respeitam, mas a nossa mãe diz-nos que, apesar disso, temos de as respeitar. Amamos como se não houvesse amanhã mas agora já ninguém nos pede em casamento como quando éramos crianças: o amor é assim mais leve, menos intenso... "um dia de cada vez". Não por querer viver tudo, mas por ter medo do futuro. Ao contrário de quando éramos crianças.

Um dia olhamos para trás e rimo-nos de nós próprios. Como é que é possível termos acreditado que o Mundo era assim?! Como é que é possível termos querido ser tantas coisas e pior, como é que achávamos que íamos conseguir concretizar todos os nossos sonhos? Onde tínhamos a cabeça quando achávamos que os nossos avós nunca seriam velhos de mais para partir, ou que os acidentes não existiam e que, por isso, nunca teríamos que chorar como os nossos pais? 

Eu sei onde tínhamos a cabeça. Tínhamos a cabeça nos sonhos! Quem me dera nunca ter deixado de ser feita deles.



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