terça-feira, 25 de março de 2014

"(...) ouvindo-o apenas, sorrindo-lhe apenas, vivendo... apenas."

Lá longe, na igreja, tocavam os sinos indicando que eram seis da tarde. Eu olhava para o relógio em jeito de confirmação e observava o movimento do ponteiro dos segundos, na esperança de que este congelasse no tempo e que eu pudesse distanciar-me de tudo aquilo que a vida é. Às vezes penso: porque passa tudo tão rápido? Porque é que a vida é um ápice, um abrir e fechar de olhos, uma rajada de vento que nos arrefece? Não queria que o tempo fosse tão rápido, não naquele dia.
O relógio. Como estava concentrada no relógio e via o tempo a passar. Sentada naquele banco ferrugento da estação de comboios sentia a solidão de todos concentrada em mim. Olhava em meu redor e as poucas pessoas que ainda ali se encontravam pareciam procurar algo incalculável. Ninguém sorria, ninguém aguardava junto a mim. "Os comboios costumam ser pontuais.", dizia um homem ao telefone, preparando a família para o facto de ir chegar a horas. Do outro lado, não muito distante de mim, uma senhora mais idosa tentava, a todo o custo, perceber o que dizia o quadro dos atrasos dos comboios e, mesmo depois de lhe perguntar se queria que lhe lesse o que lá estava escrito, e de o ter efetivamente feito, esta continuava a tentar, por si mesma, descodificar as letras que passavam. Quase no banco à minha frente, um casal apaixonado beijava-se com sede de carinho. Riam-se alto, abraçavam-se tentando aquecer-se mutuamente. Estava frio.... Todos tinham algo para fazer, algo para dizer. Não teremos sempre? A estação só nos tinha a nós.
Já antiga, já usada, parecia conter nas suas paredes a história de vidas. De vidas que haviam por lá passado, que haviam lá esperado. Azulejos azuis, pormenores em branco. Em sujo. O tempo continua a passar. O comboio não chegava. A música.
Ouvia-se uma música. Uma pequena melodia, uma voz de cortar a respiração, daquelas que apenas ouvimos uma vez e nunca mais. Um encanto de uma sereia que puxa os pescadores para alto mar, um chamamento divino. Uma voz. Quanto mais atenção lhe dava, melhor a entendia. E via. Era um rapaz, talvez da minha idade, que, por, ao contrário de todos os outros, não dar nas vistas, não havia ainda sido narrado. Cantava sentado no chão da estação. Melodia que aquecia o coração e que pedia que fosse ouvida. Vezes e vezes sem conta. Queria ouvir mais de perto, queria dizer que gostava da sua voz. Reparei que ninguém o fazia. O comboio, segundo informações, estaria a chegar. Não havia tempo para o parabenizar. Tinha muitas malas comigo, o bilhete tinha voado e poisado na linha. Apenas uns segundos me restava. O bilhete. O rapaz e a sua voz. A minha écharpe que voava ao sabor das indecisões, dos medos, do inconveniente que é o atraso, a vida. Sabia que era agora ou nunca. Assim que entrasse no comboio poderia nunca mais o ver, poderia nunca mais lhe dizer. E ele merecia. A sua voz, a sua delicadeza. Aquela voz precisava de força, precisava de apoio. O chão era um injusto palco para ele. Eu tinha que o dizer.
A écharpe ficara caída no chão da estação. O bilhete fora pisado pelo comboio. E eu ficaria ali, junto ao rapaz, ouvindo-o apenas, sorrindo-lhe apenas, vivendo... apenas.
Porque nem sempre temos que chegar a horas. Viver é ter imprevistos, é ter surpresas, é ter enganos. É não ir caso existam motivos para ficar, mesmo que tenhamos comprado bilhete.

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2 comentários:

  1. Gostei muito da palestra que deste hoje na escola secundária de Peniche. Para além de escreveres muito bem, és linda !

    Beijinho de um anónimo que ficou teu fã de um segundo para o outro ^^

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  2. Os meus sentimentos, Francisca. Muita força neste momento difícil.

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