terça-feira, 19 de julho de 2011

Viver com Kirt

Sou o Kirt. Vivo na aldeia mais pequena deste país que é Angola. O meu pai trabalha muito longe, teve de ir morar para a América do Sul; todos os meses nos manda cem euros, que é mais de metade do que ganha e é com esses cem euros que eu e a minha família vivemos. Cá em “casa” (vivemos numa cabana feita de madeira, quase sem tecto e com os poucos vidros da janela partidos) somos seis: eu, a minha mãe, e as minhas quatro irmãs; ambas com nomes começados por k, são mais novas que eu. Tenho quinze anos e, desde que o meu pai teve que ir embora, desde que teve de ir trabalhar para longe, porque já não aguentávamos a fome, sou eu, o homem cá de casa. Sou eu quem toma conta delas, das minhas irmãs e, da minha mãe, que trabalha numa loja de artesanato, onde já não é paga há mais de um ano. Eu já lhe disse para pedir o salário ao seu patrão mas, em tom baixo, disse-me que tinha é de estar calada. A meu ver, tem medo do senhor José e isso assusta-me: será que não sou forte o suficiente para proteger a minha família?
Todos os dias acordo perto das seis da manhã, quando não é mais cedo. Tenho que acordar a Kate e a Katrina, as minhas únicas irmãs que consigo que vão há escola. Não é falta de entusiasmo por parte das outras, e nem sequer falta de interesse, nós é que não temos dinheiro para ter despesas extras, para ter que comprar livros e canetas. As duas que vão, depois da escola, uma com sete anos e outra com nove, dirigem-se para os campos de arroz deste lugar e é lá que ganham o dinheiro para andarem numa escola. Eu, também, andei na escola, quando ajudava no embrulho de armas para a guerra civil, mas depois também tive de desistir… alguém tinha de ser responsável pela família e esse alguém teria de ser eu.
Tive muita pena, admito. A minha professora sempre me dissera que eu ia ser piloto, tal como eu sempre quis: dizia-me que eu tinha capacidades para pilotar um grande avião, daqueles que oiço falar quando vou fazer serviços às casas dos mais ricos; nesses dias, quando atravesso a aldeia, passo a cidade e me dirijo aos palácios onde moram os governantes, para arranjar uma lâmpada ou pregar um prego solto, eu sonho imenso! Oiço os ricos a falarem das viagens que fizeram e imagino-me a viajar também: a subir o céu, a romper as nuvens, a tocar nas estrelas mais brilhantes do sistema solar. Imagino o meu pai, que já deve ter cabelos brancos, a esperar-nos no aeroporto do país onde está, com roupas muito bonitas que há-de comprar com o seu ordenado e depois imagino os seus olhos: quando se foi embora, faz daqui a uns dias, quatro anos, lembro-me de os olhar com um fascínio gigante e ainda o oiço a despedir-se de nós, a dizer que quando voltasse compraríamos uma casa de verdade, que quando voltasse nos iria por a todos na escola e que iria dar uma prenda à minha mãe. Lembro-me tão bem desse dia que ainda hoje, passado anos, espreito pela janela antes de ir dormir e rezo à estrela Mar: peço-lhe sorte para o meu pai, peço-lhe só um pouco mais de comida para nós e peço-lhe vida, para os meus e para mim. À estrela Mar, que é a estrela que guia o caminho do meu pai, o da minha mãe, o meu e o das minhas irmãs, conto tudo e só ela é que me vê a chorar.
Eu não choro. Nunca chorei, pelo menos à frente de alguém. Eu choro muitas vezes, mas só quando estou sozinho. A minha irmã Karie chora muito quando está a chover, porque não temos o tecto todo. Quando chove muito, subo ao telhado e tento tapar as enormes fendas com plásticos velhos que guardamos na parte mais suja do nosso lar, mas pelos vistos não dá resultado. A minha irmã Karie, de seis anos, tem muito medo e nessas noites, durmo sempre com ela. Tento acalmá-la e conto-lhe como é a casa dos governantes: falo-lhe dos sofás em pele de urso, das mesas de bilhar que estão numa sala enorme cheia de brinquedos, das casas-de banho com água quente, da quantidade de cores que a filha mais nova dos mesmos tem no quarto… e dormimos iludidos e deslumbrados.
Habitualmente jantamos farinha com água, mas nos dias de festa, como, por exemplo, os aniversários das mais pequenas, a minha mãe cozinha uma sobremesa especial. Cada um tem direito a uma taça cheia e agradecemos a Deus aquele manjar, porque sabemos que foi mais dinheiro desperdiçado, só para a nossa própria gulodice. A minha mãe é muito boa cozinheira; uma vez disse-lhe que se abrisse um restaurante teria imenso sucesso e ela chamou-me tonto. Tinha eu uns seis anos, se não estou em erro. Mas agora percebo porquê: as mulheres aqui são descriminadas, tratadas como lixo; a mãe de um vizinho meu, abriu uma loja de colares muito bonitos, mas como era mulher e pobre, toda gente ficou indignada e começaram a partir-lhe tudo, chegando-lhe mesmo a bater com canas de bambu! Teve de se mudar, agora vive numa aldeia vizinha, sozinha. Os filhos, foram entregues a uma instituição e agora ouvi dizer que são explorados à força toda, por homens ricos que querem “crescer” à custa dos mais pobres. Disseram-me que eles tinham de fazer todos os tipos de trabalhos pesados, que estavam num campo de trabalho e que tinham de obedecer a um general terrível que os chicoteava sempre que questionavam uma ordem. Completamente horrível digo!
Às vezes ponho-me a pensar no ambiente onde vivo, nos meus vizinhos e no mundo onde estou inserido: eu não tenho televisão em casa, mas uma vez, um amigo meu dos tempos mais remotos da escola, filho de um governante de uma aldeia próxima, disse-me que tinha e que sabia que existiam sítios fantásticos, cheios de rôbos, casas muito bonitas e jardins tão grandes que eram verdadeiros labirintos.
Explicou-me que existiam ruas cheias de lojas e edifícios grandes cheios de comércio que até eram chamados de centros comerciais. Conto-me que existiam pessoas que usam perfumes e compram roupas muito caras. Fiquei boquiaberto! Uma vez, quando era mais pequenino, colhi uma flor que cheirava mesmo muito bem e dei-a à minha mãe. Ela, ao sentir o seu aroma, perfumou-se com ele e depois deu-me um bocadinho do seu cheiro. Foi a única vez que me “perfumei”.
Eu sei que há sítios muito melhores que este, sei que há pessoas ricas, sei que noutros sítios é proibido as crianças trabalharem, sei que há patrões que pagam às mulheres, sei que há casas bonitas e confortáveis, sei que há refeições variadas, sei que há perfumes em recipientes, sei que há aviões de verdade, sei que não há fome em muitos lugares e sei que há lojas de verdade e não barracas com coisas à venda. Sei muitas coisas, pelos vistos, sei muito mais que aquilo que julgava saber, mas sei que há pessoas que sabem bem mais. Essas pessoas andam na escola, vão à biblioteca, vêem reportagens televisivas, falam com pessoas ainda mais sábias. Essas, que por sua vez, vão ao teatro e ao cinema, que, por sua vez, visitam museus e fazem grandes viagens pelo mundo.
Eu não ando na escola, eu não visito museus, não leio livros, não vou ao teatro, Eu aprendo sem professora, A minha vida ensina-me a ouvir a opinião do vento, tal como os professores ensinam os alunos a respeitar as opiniões dos colegas. Na escola, os meninos levam falta quando não vão à mesma, eu levo falta quando fecho os olhos. Realizar os trabalhos de casa, para mim é cumprir as tarefas diárias. Chumbar a uma disciplina, representa na minha vida, um erro muito grave cometido no meu dia-a-dia.
Agora que penso bem, agora que vejo melhor… talvez o que eu tenha seja o suficiente: aprendo de uma forma diferente, mas não é por isso que deixo de aprender; tenho umas calças routas e uma camisola velha, o suficiente para não passar frio; alimento-me de farinha e água, o quanto baste para não morrer à fome; tenho uma família e ela ama-me. Que posso mais pedir?
A minha vida é “rústica” dirão vocês e eu adjectivo-a como simples mas, talvez seja isso que falta a muitos rapazes da minha idade: obrigações, dificuldades, obstáculos e diferenças sociais, para que, no futuro, façam deste lugar um sítio justo e de igualdades.


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