Não era um soldado, mas sim uma mulher. Uma mulher muito
pequenina, daquelas que não se podem mesmo medir aos palmos! E tinha uns olhos
azuis da cor do mar, do céu e da camisola de lã que vestia naquele dia. Não ia
a cavalo, mas sim a correr, numa tentativa inútil de não se molhar. Não só
chovia imenso, como trovejava o céu parecia uma tela abstracta e nunca
inacabada… De segundos a segundos, um pincel veloz desenhava um raio bem
amarelinho a lápis de cera, e pumba! Ouvia-se um estrondo!
Aquela mulher estava a passear para desanuviar a cabeça,
como tantas vezes fazemos. Cansada do seu trabalho, dos seus colegas e da
porção de cartas por abrir em cima da mesa da sala com contas para pagar,
precisava de apanhar ar. Sentia-se aborrecida, como se tivesse sido sugada pelo furacão da rotina. Não
conseguia mudar nada no seu dia, e isso irritava-a. Acordava todos os dias às
oito e meia da manhã, tomava banho, vestia-se, comia sempre um pão com queijo e
bebia dois goles de leite de chocolate e lavava os dentes, bem como se calçava
e escolhia o casaco, tudo isto ao mesmo tempo, e vezes sem conta durante o ano…
Estava farta! E, ali, à chuva, sentia que estava finalmente a fazer alguma
coisa diferente. Se estivesse a cumprir a sua rotina, àquela hora
encontrar-se-ia no meio de uma secretária impecavelmente arrumada, e não ali,
como uma doida varrida, a molhar-se sem procurar abrigo.
Por outro lado, e numa cidade bem próxima, um indivíduo
tentava a todo o custo abrigar-se. Mas, ao contrário do que reza a história,
não era um mendigo, mas sim um menino com cerca de doze anos, a tremelicar de
frio, enquanto num gesto de humildade pedia que lhe dessem algo para vestir. Chamava-se
Martinho, e era um sem abrigo recente naquela rua. Os pais tinham-no abandonado
num dia igualmente chuvoso e agora caminhava sem destino, inocentemente
esperando a chegada dos seus progenitores e de um pedido de desculpas sincero
com a devida justificação.
Já passava das oito da noite, e, com aquela caminhada a
passo acelerado, foi inevitável aquela mulher e Martinho cruzarem-se. Tal como
todos os outros adultos naquele dia, também ela tinha passado para dar uma
moeda, mas, e desta vez distinguindo-se dos restantes, ela parou. E, assim que
lhe estendeu a mão para que se levantasse, começou ainda a chover mais e só
puderam parar de correr quando chegaram a casa dela. Não disseram uma única
palavra no caminho, mas ambos sabiam o que significava: um novo começo para
ambos.
Há alguma coisa que quebre mais a rotina que uma criança? E
Martinho, não precisaria de uma mãe que não o abandonasse?
Não será este então o milagre que poderíamos celebrar
anualmente? A solidariedade é o milagre da sociedade.
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